Nas salas de aulas, espalhadas por esse Brasil afora, dramas dolorosos cotidianamente são vividos pelos docentes. A grande maioria, diante da nossa impotência se cala e sofre silenciosamente a dor provocada pelo impedimento ao livre curso da nossa profissão, a violação da nossa vocação, não é à toa que milhares de docentes estão adoecendo, mutilados pelo sistema perverso que transforma o ato de educar numa tormentosa via crucis.
Ontem, mais uma vez eu tive que beber mais do cálice amargo que nos oferece o atual sistema educacional. Por volta das 18 horas, estou em sala de aula, esperando a chegada da turma. O primeiro aluno a chegar, me cumprimenta, senta-se na carteira em frente a minha mesa e me diz que estudou o conteúdo, da aula anterior, e tem uma dúvida. Sento-me ao seu lado e ele abre o seu fichário. Encontra a página das anotações e me dá para ler, a letra é indecisa, insegura. Começo a ler o texto, por ele escrito com os já tradicionais erros, sintomas típicos do analfabetismo funcional: nomes próprios grafados com letras minúsculas, erros de concordância de todos os tipos, pontuação ausente, etc.
O conteúdo trabalhado na aula anterior foi a Inconfidência Mineira, o aluno não consegue entender o que quer dizer a seguinte frase: “o movimento foi influenciado pelos ideais iluministas, pela independência dos Estados Unidos...”, pacientemente lhe explico, usando uma linguagem que mais se aproxime do seu falar habitual. Ele continua sem entender, me conta que passou a tarde pesquisando na lan-house e não achou nada que o ajudasse. Faço mais duas tentativas e nada. De repente pergunto a ele o significado da palavra influência, ele não sabe. Aos dezenove anos, casado, cursando o segundo ano do Ensino Médio, desconhece totalmente o significado da palavra influência. Não tenho palavras para descrever os meus sentimentos naquele momento, mantive afivelada ao meu rosto a máscara da naturalidade, mas por dentro eu estava em pedaços. Defino a palavra, mas ele continua sem entender. Pacientemente, através de analogias, finalmente consegui que ele entendesse o significado da palavra influência e o sentido da frase.
Para incentivá-lo e aumentar a sua auto-estima, lhe disse que aquele era um problema fácil de ser resolvido, velho conhecido de todos os professores o famoso “vocabulário fraco”, bastante comum, enfrentado e superado por quase todas as pessoas. Receitei doses maciças de leitura sempre acompanhada do dicionário. Ele na sua inocência sorriu agradecido e animado e disse que iria seguir à risca a minha prescrição.
Não preciso mencionar que o meu dia, ou melhor, a minha noite, acabou ali. Como é possível promover uma pessoa ao segundo ano do Ensino Médio nessas condições? Lembrei-me que esse aluno no inicio do ano letivo, havia me perguntado se eu iria dar pontos pelo caderno mantido em dia, pela frequência às aulas e trabalhos para ajudar na nota. Respondi que esse procedimento era inadequado e desnecessário, (costumo explicar o conteúdo e a toda hora pergunto a turma se tem alguma dúvida, se alguém apresenta uma dúvida, não meço esforços para esclarecer, só me dou por satisfeita quando vejo o clique do entendimento nos olhos do aluno), pois tinha certeza que ele seria capaz de entender a matéria, estudar e tirar uma boa nota. Ele assentiu com a cabeça e a aula prosseguiu.
Após as avaliações, verifiquei que o desempenho dele no primeiro bimestre foi insatisfatório, conversei com ele para saber se estava acontecendo algum problema e ele disse que não, estava surpresa com o resultado, pois havia estudado. Perguntei se ele estava seguindo as instruções que dei para o estudo, pois sempre passo para as minhas turmas, técnicas de estudo, sua resposta positiva me tranqüilizou, pois há vários fatores que podem influir na hora de uma prova e a nota ser baixa.
Trabalhei normalmente os conteúdos do segundo bimestre, realizei exercícios, fiz aulas utilizando apresentação PowerPoint e data-show, fiz exercícios, fiz uma revisão no primeiro tempo abordando todo o conteúdo do teste e o apliquei no segundo tempo, no caso da prova fiz uma revisão na aula anterior. Em todas elas o aluno prestou atenção tirou dúvidas, mas novamente o resultado foi insuficiente.
Na primeira aula após o recesso, depois da correção da prova conversei com a turma para saber das dificuldades, novamente o aluno me deu a mesma explicação, pedi a ele que estudasse o conteúdo trabalhado em aula e chegasse mais cedo na semana seguinte para tirar as dúvidas, na semana passada ele faltou, veio hoje e aconteceu o que descrevi acima.
O que fazer em uma situação dessas? Aprovar o aluno e manter a farsa? Reprovar o aluno e se sentir a última pessoa do mundo? Certamente esse jovem, foi poupado pela progressão automática lá na infância, sendo promovido sem ter o menor domínio das competências e habilidades, o dinheiro dos contribuintes, pois a escola pública não é de graça, foi gasto, as estatísticas referentes à educação mostraram o sucesso do sistema, mas infelizmente a escola não cumpriu sua missão, aos 19 anos ele é um analfabeto funcional, como milhares de jovens neste país. Quem agora vai protegê-lo dos traumas, da baixa autoestima, da sensação de incapacidade e angústia que será constante em sua vida adulta?
Ele continuará vivendo no puxadinho, diante da vala negra, vivindo de bicos e rezando para sobreviver ao próximo tiroteio que ocorrer na comunidade. Em breve terá filhos e vai mandá-los para a escola, na esperança de mantê-los longe do tráfico, pois a escola é uma esperança, uma porta de saída da vida de miséria e desigualdade, entretanto a piedade hipócrita e conivente que o promoveu anos seguidos para não traumatizá-lo, travou a sua porta de saída.
Sinceramente não sei se vou conseguir ajudar esse aluno, mas farei o possível para que ele avance, mesmo que tenha que reprová-la, pois se quando as primeiras turmas mutiladas pela progressão continuada chegaram ao ensino médio, tivessem sido reprovados, a opinião pública ciente das consequências da progressão continuada, possivelmente hoje, meu aluno não seria um analfabeto funcional.
Desculpem-me o desabafo, mas me recuso a ficar doente, a ser envenenada com a pestilência que se abateu sobre o sistema educacional, sorvi até a última gota do cálice, mas esse veneno pode ser transformado em antídoto, agindo como um estimulante para continuar me esforçando, escrevendo, pedindo e rezado pela melhoria da educação. A minha disposição para entrar dentro das comunidades e continuar lecionar em sua escolas é reforçada por essas doses, quase diárias e enquanto tiver vida continuarei tentando, espero que os filhos dos meus alunos possam encontrar uma escola melhor do a que foi freqüentada por seus pais.
Clayton Coelho:
O seu texto é um relato fiel e fidedigno da nossa realidade educacional. Em suas palavras, tive a impressão de ter vivido esse acontecimento em minha prática docente. São milhares de alunos nessa situação e não há ninguém da secretaria de educação ou da direção pedagógica das escolas que queiram discutir com seriedade essa triste realidade.
Aqui em Minas, a situação não é diferente. O fato fica mais agravado quando desconsideram essa realidade para que sigamos e apliquemos a todo o custo o CBC – Conteúdo Básico Comum, para mais tarde entrarmos com uma prova.
Priorizam sobremaneira um determinado conteúdo sem levar em conta a atual realidade do aluno.
Não precisa ser expert em educação pra saber que o resultado, como não podia ser diferente, será o fracasso para o aluno e a sensação de impotência e angústia para o professor, por não ter conseguido elevar o nível de conhecimento desse estudante.
Esse aluno já chegou assim pra você, portanto também não vejo com bons olhos ter que reprová-lo, pois ele é apenas mais uma vítima do abandono de nossa educação pelas nossas autoridades.
Não quero aqui defender a aprovação automática, mas reprová-lo poderá fazê-lo ficar sem qualquer motivação para continuar os seus estudos. Pois, ele atribuirá que tal situação é por sua própria culpa, quando na verdade não é.
Talvez, a aprovação associado a um acompanhamento mais individualizado ao longo dos anos poderá ser o menos pior para a sua realidade. A grande questão é: nesse sistema de linha de montagem, quem irá dispendiar tempo e recursos humanos pra atender essa demanda (analfabetos funcionais) cada vez mais crescente em nossas escolas??
Conhecimento não se produz do dia pra noite, leva tempo e muito dinheiro, coisas que o atual modelo educacional não quer fazer.
Clayton Coelho, B.H - MG
Agradeço ao colega o comentário e destaco duas questões fundamentais colocadas por ele.
A primeira é a cara de pau dos gestores em ignorar essa realidade em função das articulações políticas município/estado. O município aprova um aluno sem que o mesmo tenha adquirido as habilidades e competências pertencentes ao Ensino Fundamental, automaticamente ele ingressa no Ensino Médio sem estar adequadamente preparado para tal. Os governos estaduais ignoram essa realidade e assumem a continuação desse faz de conta, transferindo para os docentes a responsabilidade do fracasso desses jovens. Entretanto nada podemos fazer, pois o bom aproveitamento no Ensino Médio necessita de uma base construída anteriormente, costumo dizer que nós professores e professoras do Ensino Médio somos como construtores especializados na construção do segundo pavimento, o qual fica inviabilizado se o primeiro andar não tiver sido adequadamente construído.
Enquanto as autoridades não levarem em conta esse problema, toda e qualquer “reforma” para melhorar a educação, será infrutífera. Bastaria que o Estado adotasse uma prova de admissão para o Ensino Médio, caso o candidato não fosse aprovado, caberia ao município recuperar esse aluno.
A segunda questão diz respeito à aprovação desse aluno, considerando que o melhor é aprová-lo, pois o mesmo não tem culpa e é uma vítima desse sistema. Também considero esse aluno uma vítima, mas vejo que ao aprová-lo, estamos colaborando para a manutenção dessa situação. Vive-se um dilema ético, pois ao ter pena do aluno estamos contribuindo e para que outros tenham seu futuro destruído pelo descaso com a educação pública. Pensar em aprovação com acompanhamento é uma proposta intereressante, mas que vai patrocinar esse acompanhamento? O município? O Estado? A União? Infelizmente ninguém o fará. Independente da nossa aprovação, esse jovem já se encontra irremediavelmente reprovado, isto é com seu futuro totalmente destruído, pois não têm condições para prosseguir nos estudos. O que vemos acontecer aqui no Rio de Janeiro e que esses jovens são um rico filão para as instituições de ensino superior privadas de baixa qualidade que adotam a aprovação automática. Alguns anos atrás, o Fantástico fez uma matéria sobre uma dessas faculdades, pegou um rapaz totalmente analfabeto e o inscreveu no vestibular. Para surpresa geral ele foi aprovado. O mesmo vem acontecendo em todo o Brasil, os jovens de baixa-renda conseguem um diploma universitário, mas o mesmo não lhes abrirá as portas do mercado de trabalho. É doloroso perceber que a educação, que poderia ter transformado a vida desse jovem, somente o enganou e espoliou à vida inteira.
O pior de tudo isso é ver que rios de dinheiro público anualmente são desperdiçados pela secretarias de educação na implementação de projetos mirabolantes que a ninguém beneficia. Entra governo e saiu governo e tudo muda pra continuar no mesmo.
Infelizmente para os nossos representantes o que interessa é a utilização da verba pública para garantir a próxima eleição, os direitos e o bem estar do povo são apenas promessas de campanha.
O pior de tudo isso é ver que rios de dinheiro público anualmente são desperdiçados pela secretarias de educação na implementação de projetos mirabolantes que a ninguém beneficia. Entra governo e saiu governo e tudo muda pra continuar no mesmo.
Infelizmente para os nossos representantes o que interessa é a utilização da verba pública para garantir a próxima eleição, os direitos e o bem estar do povo são apenas promessas de campanha.
Clayton Coelho:
ResponderExcluirO seu texto é um relato fiel e fidedigno da nossa realidade educacional. Em suas palavras, tive a impressão de ter vivido esse acontecimento em minha prática docente. São milhares de alunos nessa situação e não há ninguém da secretaria de educação ou da direção pedagógica das escolas que queiram discutir com seriedade essa triste realidade.
Aqui em Minas, a situação não é diferente. O fato fica mais agravado quando desconsideram essa realidade para que sigamos e apliquemos a todo o custo o CBC – Conteúdo Básico Comum, para mais tarde entrarmos com uma prova.
Priorizam sobremaneira um determinado conteúdo sem levar em conta a atual realidade do aluno.
Não precisa ser expert em educação pra saber que o resultado, como não podia ser diferente, será o fracasso para o aluno e a sensação de impotência e angústia para o professor, por não ter conseguido elevar o nível de conhecimento desse estudante.
Esse aluno já chegou assim pra você, portanto também não vejo com bons olhos ter que reprová-lo, pois ele é apenas mais uma vítima do abandono de nossa educação pelas nossas autoridades.
Não quero aqui defender a aprovação automática, mas reprová-lo poderá fazê-lo ficar sem qualquer motivação para continuar os seus estudos. Pois, ele atribuirá que tal situação é por sua própria culpa, quando na verdade não é.
Talvez, a aprovação associado a um acompanhamento mais individualizado ao longo dos anos poderá ser o menos pior para a sua realidade. A grande questão é: nesse sistema de linha de montagem, quem irá dispendiar tempo e recursos humanos pra atender essa demanda (analfabetos funcionais) cada vez mais crescente em nossas escolas??
Conhecimento não se produz do dia pra noite, leva tempo e muito dinheiro, coisas que o atual modelo educacional não quer fazer.
Clayton Coelho, B.H - MG
Concordo em gênero, número e grau cara amiga...
ResponderExcluirMe sinto também impotente para lutar contra essa triste realidade onde só o que prevalece são os números, as estatísticas e não a realidade e as vidas dos alunos no presente e futuro...
Clayton e Luciano
ResponderExcluirCaros amigos, acho que um dos maiores problemas enfrentados por nós é a impotência diante dessa triste realidade, infelizmente ainda não inventaram um "viagra educacional". O pior de tudo é o dilema ético que vivemos cotidianamente, reprovar ou aprovar?
Só nos resta lutar e rezar com todas as forças para mudar essa situação, não sendo conivente com essa farsa. Caso a categoria estivesse unida e mobilizada esses jovens teriam uma chance, mas do jeito que está o sistema continuará ceifando o futuro desses jovens.
Pena que para os responsáveis por essa situação não existirá um tribunal de Nuremberg.
Grande abraço