ROBERT KURZ - TEXTOS

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O OCASO DA JUVENTUDE DOURADA DA GLOBALIZAÇÃO


Ideologias sociais de crise nos países ocidentais
Robert Kurz


Por muito tempo as declarações contraditórias dos intelectuais sobre o caráter da globalização pareciam manter a balança em equilíbrio: são maiores os riscos ou as chances? Temos de lidar com um limite objetivo do desenvolvimento capitalista ou com uma nova era de acumulação do capital? A pobreza global aumenta ou diminui? Levantava-se teoria contra teoria, análise contra análise, estatística contra estatística, interpretação contra interpretação. Na verdade, todo esse debate foi definido por uma intelligentsia que nos centros ocidentais observava de camarote o processo. O raciocínio era platônico; não estava em jogo a própria pele social. Era o jogo das contas de vidro de uma virtualidade que não devia mostrar seu núcleo social duro.

Nos últimos anos isso se alterou por completo. Desde o colapso da new economy no começo do ano de 2000, a crise social vem se estendendo cada vez mais também pelos países ocidentais. Agora não são atropelados apenas grupos marginais sem grande representação (desempregados por tempo indeterminado, dependentes da assistência social, imigrantes e ilegais, pessoas à procura de asilo, mães solteiras, inválidos, os grupos afetados pela velhice desamparada etc.); também o centro da sociedade é atingido. As rendas da grande maioria diminuem, os sistemas de seguro social se decompõem, os serviços públicos são desmantelados, a assistência médica dos cidadãos normais se encontra ameaçada. A privatização dos riscos assume uma dimensão de encargos financeiros que acaba destruindo o padrão de vida habitual e estrangulando a economia interna.

Mas, sobretudo, a crise econômico-social atingiu fundo justamente aquela parcela das sociedades ocidentais que menos esperava por isso, a saber: a pretensa "geração fundadora" do ramo da Internet e tecnologias de informação, no sentido mais amplo, as camadas competentes da chamada sociedade da informação ou do conhecimento, que antes foram tratadas como as grandes ganhadoras com a globalização. Ainda há pouco o sociólogo liberal Ralf Dahrendorf falou da "classe global" nesse sentido, a qual lhe parecia ser o novo paradigma da dominação social. Essa "classe", segundo Dahrendorf, começou a "dar o tom", a generalizar seus valores, a fazer de suas inclinações específicas os sonhos de muitos.

Sem dúvida alguma, isso é correto. E é preciso até mesmo ampliar o círculo social dessa "classe global". A ela se ligam não apenas a indústria de software e as empresas de prestação de serviços pela Internet, como a Amazon etc., mas também as tecnologias "duras" de alguns setores da produção e das prestações de serviços industriais que ascenderam no curso da globalização, como a indústria aeronáutica e as empresas aéreas, para não contar os produtores de hardware. Além disso, há os serviços comerciais como a indústria de turismo e de publicidade, que, embora já tivessem tido sua primeira florescência nos tempos do fordismo, passaram a vivenciar um novo surto na sequência da terceira revolução industrial e da globalização. Não em último lugar, trata-se também da "produção ideológica" em sentido amplo, isto é, de um campo de atividades da indústria cultural que se expandiu particularmente nos anos 90. Nesse campo se desenvolveu uma larga camada de novos trabalhadores da mídia, a qual criou o slogan "sociedade do conhecimento", divulgando-o de maneira folhetinesca a fim de celebrar a si mesma.

São precisamente esses pretensos "campos do futuro", especialmente forçados pelo processo de globalização, que foram arrasados mais violentamente pelo ciclone da crise e transformados em campo de destroços econômicos. Como se sabe, verificou-se que essa magnificência toda se baseava apenas em uma conjuntura global de bolhas financeiras. Nem todas as Bolsas estouraram, mas já uma parte suficientemente grande para causar o revés violento na economia global, o qual derrubou em primeiro lugar os setores de inovação. As novas tecnologias e as novas mídias não desaparecem naturalmente por causa disso; tampouco a globalização é anulada. Mas é mais do que claro que a terceira revolução industrial e a globalização não podem trazer uma nova era de crescimento capitalista. As potências tecnológicas e a socialização planetária do século 21 são completamente incompatíveis com as formas econômico-sociais anteriores da modernidade. O Ocidente e os centros asiáticos vivenciam agora o mesmo processo de dissolução social e de barbárie que já se propagara pelas regiões do Terceiro Mundo, fracassadas com a "modernização atrasada". A ambivalência das interpretações desapareceu; o assunto é decidido negativamente.

É claro que não se trata meramente de um processo objetivo. A consciência social precisa elaborar de algum modo a crise que irrompe. Isso concerne sobretudo àquelas novas camadas sociais que, segundo Dahrendorf, haviam começado a "dar o tom" em termos simbólicos-culturais e cujos campos agora são soterrados. Com que mentalidade e com que ideologia nós temos de lidar nesse contexto? Dahrendorf ilustra a "classe global" com aquelas conhecidas figuras que "passam muito tempo nos saguões dos aeroportos internacionais", tagarelando sem parar em seus celulares. São pessoas que levaram Tony Blair ao poder e assinam sua doutrina do new labour. Na Alemanha, a etiqueta se chama "novo centro". Não é uma classe de grandes magnatas capitalistas, ainda que Bill Gates conste dela; mas tampouco é uma "classe trabalhadora" claramente definida. Poderíamos designá-la como "empresários de seu capital humano", não importando de que forma eles investem em si mesmos. Muitas vezes são prestadores de serviço móveis, do excêntrico da computação aos animadores do “Club Méditerranée".

Este tipo se encontra em todo o mundo, mas naturalmente, como a globalização, em densidade diferente. Se no Terceiro Mundo é uma camada urbana diminuta, nós encontramos nos países ocidentais uma ampla base de grupos sociais, com um determinado projeto de vida, que se sentiram como parte da "classe global", pelo menos segundo a possibilidade. Também aqueles cuja posição econômica na verdade já era precária desde o início puderam imaginar para si, com o auxílio das redes sociais (ou do suporte familiar dado pelas gerações mais velhas do "milagre econômico", há muito tempo transcorrido), um futuro no "novo centro", participando de certo modo do "capital cultural" (Bourdieu) dos novos setores aparentemente promissores.

Mas é indiferente se se trata dos que ascenderam socialmente na curta era da nova economia ou meramente dos sonhadores ideológicos da "sociedade do conhecimento", dos pequenos empresários da indústria cultural ou dos trabalhadores baratos das mídias: é uma classe de ilusionistas econômicos e políticos. Até mesmo a competência e o profissionalismo ostentados são amiúde meros produtos da simulação. O culto ideológico pós-moderno da virtualidade tem seus fundamentos tecnológicos nos mundos ilusórios das novas mídias e no espaço de comunicação "desrealizado" da internet. Em termos econômicos, corresponde a isso a arquitetura vaporosa do capitalismo das bolhas financeiras que hoje chega ao fim; em termos políticos, a encenação de figuras imaginárias preparadas pela mídia e de vocábulos-design conforme o padrão da propaganda comercial. Essa virtualidade determina a consciência da juventude socializada nos anos 90, a qual constitui um segmento substancial da "classe global" difusa. Em geral são pessoas jovens (mais ou menos entre 25 e 40 anos) que definem a imagem do "novo centro".

Por um lado, essa "classe global" jovem não tem passado nem futuro; ela sucumbiu à ausência de história do mercado total. Apesar disso ela é, por outro lado, o produto de uma experiência histórica determinada. Seu grau zero foi o fim do socialismo, o colapso dos movimentos de libertação e dos regimes desenvolvimentistas no Terceiro Mundo, o ocaso do velho paradigma marxista, o emudecimento da crítica social emancipatória e a decadência da reflexão teórica em geral. Em muitos aspectos, pode-se falar de uma jeunesse dorée, de uma "juventude dourada", leviana, consumista e viciada em diversões. O protótipo dessa designação foi a juventude parisiense contra-revolucionária após a queda dos jacobinos (1794). Foram os filhos de uma minoria rica da grande cidade, como hoje no Terceiro Mundo, separada do grosso de seus contemporâneos. Nos centros ocidentais, ao contrário, é a maioria de uma determinada geração que tem de viver agora seu Waterloo econômico-social.

A "classe global" em sentido amplo é ainda jovem, mas seu futuro já passou. Isso é perceptível não apenas pelos parâmetros econômicos. Muitos não puderam nem sequer assimilar o desastre social em que se dissolveram seus sonhos e suas fantasias. Mas o choque da realidade vai além da experiência de não poder pagar mais o aluguel e de se ver de repente, após as esperanças ambiciosas da nova economia, fazendo bicos deploráveis. Foi também o abalo de 11 de setembro que quebrou o pescoço da pós-modernidade. O simbólico desse ataque terrorista salta aos olhos quando se lê a descrição que Dahrendorf faz da "classe global": "Os que chegaram ao arranha-céu das possibilidades não podem alcançar o topo; hoje em dia o topo está muito longe para a maioria... Mas, enquanto uns elevadores só sobem até o décimo andar e outros só começam no 50º, há para todos uma subida. Mas há ainda aqueles que nem sequer alcançam o andar térreo do edifício das possibilidades". Com um único golpe, a destruição brutal das torres gêmeas e a queimadura do Marco Zero tornou evidente para a "classe global" e seus oportunistas ideológicos que seu "arranha-céu das possibilidades" não é o mundo inteiro e que a "fúria bárbara da destruição" não poupa nem mesmo os centros.

O fim das ilusões econômicas é também o fim da "segurança". Para medir como a jeunesse dorée da pós-modernidade decaída, agora não mais tão dourada, assimila sua própria crise, pode se aduzir como indicador a geração correspondente dos radicais de esquerda. Sem dúvida é uma pequena minoria ideológica, mas que passou, como parte integrante da sociedade, pela mesma socialização e provém do mesmo meio e dos mesmos setores sociais. Justamente porque ela precisa se legitimar no interior dessa relação com a pretensão do pensamento refletido, ela pode servir de sismógrafo para as tendências mais gerais. Essa esquerda virtualizou sua própria radicalidade há muito tempo, conforme o padrão da sociedade circundante. A crítica econômica dura foi substituída em grande parte por um culturalismo brando. Por esse motivo, a minoria de esquerda se encontra tão despreparada diante das catástrofes econômicas e políticas da pós-modernidade em colapso quanto a grande maioria da "classe global".

Sob a pressão dos fenômenos reais que não se deixam mais desrealizar, dissolvem-se os paradigmas de qualquer modo já extenuados de uma crítica social cujos conceitos se tornaram completamente imprestáveis. Na presente crise mundial, o chão social comum das forças sociais concorrentes passa a tremer, as formas categoriais comuns se rompem, o sistema referencial comum choca em seus limites. A ala esquerda da "classe global" e de sua jeunesse dorée é completamente incapaz de se colocar esse problema.

Uma parte refugia-se em reações regressivas. A reinterpretação culturalista da crítica do capitalismo e do anti-imperialismo se aproxima de idéias reacionárias, saturando-se de anti-semitismo e de concepções neonacionalistas. O conceito de "povo", tal como deve ser mobilizado contra as consequências negativas da globalização capitalista, revela sua qualidade anti-emancipatória de estreiteza "étnica". O espectro da regressão ideológica vai da nostalgia do keynesianismo nacional até o projeto folclórico, incluindo a simpatia pelos terroristas suicidas. Uma outra parte da esquerda na "classe global" gostaria de se refugiar atrás dos muros da fronteira imperial a fim de barrar a barbárie lá fora no Terceiro Mundo. De súbito, essa esquerda se torna tão estupidamente pró-americana quanto seus pais eram estupidamente antiamericanos. Invocam irrefletidamente os "valores ocidentais", o "mito de Nova York" e os deleites do consumo de mercadorias. A crítica do capitalismo é abandonada; antes de tudo a máquina militar norte-americana deve criar a "ordem".

Essas alternativas são tão repugnantes que alguns jovens enojados da esquerda da "classe global" decadente quiseram recorrer aos fósseis do marxismo tradicional. Mas o mundo dos proletários das máquinas a vapor está tão distante das condições sociais hodiernas da crise que essa espécie de nostalgia é tomada a sério por muito poucos. A ala esquerda da jeunesse dorée pós-moderna declinante mostra em suas reações ignorantes que a "classe global" em seu todo está paralisada. Mas talvez essas pessoas ainda biograficamente jovens, que não podem se desligar da socialização dos anos 90, já sejam na verdade os velhos, e os de esquerda com 30 anos de idade sejam como que "vovôs vermelhos". Nos protestos em massa no mundo todo contra a Guerra do Iraque se manifesta uma nova geração, de pessoas de 15 a 20 anos, para a qual a visão de mundo da geração da nova economia e de sua esquerda é já parte da história. Esperemos que eles venham a compreender melhor que os novos tempos e as novas crises requerem também novas respostas da crítica social emancipadora.

Original DIE JEUNESSE DORÉE DER GLOBALISIERUNG em www.exit-online.org. Publicado na Folha de São Paulo em 06.06.2003 com o título O OCASO DA JUVENTUDE DOURADA DA GLOBALIZAÇÃO e tradução de Luiz Repa. Publicado no jornal Archipel, FORUMCIVIQUE.ORG, 11.11.2003, com o título LA JEUNESSE DORÉE DE LA GLOBALISATION.

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FORMANDOS, MODELO DESCONTINUADO


A miséria dos escassos lugares disponíveis na formação profissional aponta para a crise do ensino escolar e profissional

Robert Kurz


A situação no mercado da formação profissional está pior do que nunca. Abre-se um buraco, que jamais se fechará, entre a oferta e a procura, como revela o mais recente balanço da Agência Federal para a Formação Profissional, apesar de todas as tentativas de paliativos. Dos candidatos, que chegaram aos 763.000, 50.000 ficam de fora logo no início do ano de formação. E isto é apenas "a ponta do iceberg", segundo Regina Görner, da direcção do sindicato IG Metall, pois um número maior será empurrado pela administração do trabalho, para medidas de qualificação baratas, "num acto absurdo de linha de espera". Não se trata de uma ruptura passageira, mas de uma tendência de longo prazo. Por isso já não serve a má desculpa demográfica da "geração de forte natalidade". De facto, pela primeira vez encontram-se entre os candidatos aos lugares de aprendizagem mais "casos antigos" do que finalistas da escola. E esta diferença cresce de ano para ano.


Do lado da procura a miséria dos escassos lugares disponíveis de formação aponta para a decomposição do sistema escolar em três ramos e das perspectivas profissionais a ele ligadas. A velha equiparação da escola secundária básica [Hauptschule] ao ensino industrial e artesanal, da escola secundária média [Realschule] à formação administrativa, empregados de escritório, etc. e do Liceu [Gymnasium] ao estudo para profissões académicas, deixou de funcionar. Isto tem muito a ver com o facto de, contrariamente a todos os sermões dominicais dos políticos, as despesas estatais com a educação serem drasticamente cortadas. A crise do mercado de trabalho cruza-se cada vez mais com a crise das finanças do Estado e consequentemente de todo o sistema de ensino. Por um lado, a escola secundária básica [Hauptschule] está sistematicamente à beira da ruptura devido a medidas de poupança, e joga fora cada vez mais jovens sem conclusão escolar, ou seja, sem qualificação alguma, os quais não têm nenhuma chance de obter uma formação profissional. Por outro lado, o desemprego estrutural atingiu entretanto, não só os sectores médios da administração, comércio, banca e seguros, mas também as profissões académicas. Uma vez que, em parte, os graus académicos só levam à falta de perspectiva da "geração de estagiários", mal pagos ou mesmo não pagos, o número de candidatos a um lugar de formação profissional, com qualificação para entrar na universidade e em cursos técnicos superiores, só este ano subiu à volta de 9 %, atingindo mais de 100.000 casos. De resto, o encargo financeiro dos cursos superiores provoca o seguinte: Nos estados federais que já introduziram propinas no ensino superior, é muito mais frequente que os estudantes com qualificações para esse ensino, procurem antes os lugares médios de formação profissional. Assim ficam pelo caminho os candidatos vindos da escola secundária básica [Hauptschule], porque agora têm que concorrer com a massa dos vindos de escolas técnicas superiores e de liceus.


A situação está a agudizar-se dramaticamente com a simultânea diminuição progressiva da oferta. Se em 1999 se firmaram ainda 631.000 contratos de formação, em 2005 já foram só 550.000 e em 2006 serão menos de 500.000. A formação profissional pertence aos factores de custo, que são eliminados como peso morto, sob a pressão da concorrência de crise global. Num já considerável número de grandes conglomerados, é a crescente orientação para os mercados financeiros, por causa da falta de acumulação real que, numa manobra de política de redução de custos, atira para segundo plano não só a produção de bens como também a formação prática. E muitas pequenas empresas, à beira da bancarrota, suprimem os lugares de formação sob pressão da luta pela sobrevivência. A crise do sistema escolar em três ramos é simultaneamente a crise do sistema dual de formação profissional: as escolas profissionalizantes enchem-se com um número crescente de desempregados e finalistas da escola secundária básica que não conseguiram um lugar na formação profissional. Com estas condições, segundo um estudo recentemente publicado, os actualmente 8% da população pobres ou da camada inferior na Alemanha vão subir em flecha no próximo ano; e perante o contínuo corte nos lugares de formação, este aumento não virá apenas do "proletariado da formação profissionalizante", mas também de entre os jovens com qualificações médias, postos de lado. O capitalismo abandona os seus filhos.


Original AZUBIS ALS AUSLAUFMODELL in: www.exit-online.org


Publicado em 20.10.2006 em "Freitag", Berlim.

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O eterno sexo frágil

A mulher continua responsável pela cozinha e pelos filhos e nunca é levada a sério na economia ou na política

Robert Kurz


Segundo o mito de criação bíblico, a mulher nasceu quando Deus retirou uma costela ao homem.

Essa imagem patriarcal é dúbia: de um lado, a mulher parece um simples apêndice do homem; de outro, porém, subentende-se que o homem, ao ser "cindido" de sua parte feminina, é ele próprio ferido e sofre uma perda. O problema, claro, não está no plano da anatomia. A "pequena diferença" que as crianças descobrem precocemente em seus corpos não diz nada, em essência, sobre a maneira que as atribuições culturais e sociais são repartidas entre os sexos.

O domínio masculino (patriarcado) não decorre de caracteres biológicos, antes é um aspecto básico da forma social, sendo portanto o resultado de processos históricos. Por isso o patriarcado está longe de ser verificado em todas as culturas.

Na história sempre houve sociedades que conheceram uma relação bastante igualitária entre os sexos.

E cotejos interculturais mostram que também aquelas "qualidades" sociais ou psíquicas, rotuladas com aparente espontaneidade como "tipicamente femininas" ou "masculinas", podem revelar-se sob formas totalmente contraditórias em épocas diversas, em diversas estruturas sociais e diversos modos de produção.

O universalismo abstrato do moderno sistema produtor de mercadorias sempre despertou a impressão de que fosse relativamente neutro sob o prisma sexual. Mercadoria é mercadoria e dinheiro é dinheiro; onde estaria inscrita aí uma valoração sobre os sexos?

A sobrevivência das estruturas patriarcais na família e na sociedade podia parecer assim, numa análise superficial, um mero resquício do passado pré-moderno.

Nesse sentido, o feminismo reivindicou desde a Revolução Francesa uma "igualdade de direitos", tal como a prometia a forma universal da economia monetária moderna. Desse ponto de vista, a redução masculina do lema "liberdade, igualdade, fraternidade" era um puro arbítrio da dominação masculina herdada do passado, devendo ser ampliada para abarcar não só uma fraternidade entre "irmãos", mas também entre "irmãs".

Até hoje o feminismo como política não foi além da exigência de participação feminina no universalismo do moderno sistema produtor de mercadorias.

O "homem abstrato", o átomo individual da sociedade, pode ser tanto homem quanto mulher. De outro lado, a pesquisa histórica e sociológica feminista descobriu há tempos que a desvantagem e a depreciação da mulher na modernidade não representam nem um "resquício" de relações pré-modernas nem uma simples vindicação masculina do poder, mas radicam profundamente nessas próprias relações modernas.

Isso porque o moderno sistema produtor de mercadorias não é tão universal como parece ser. Ele tem de certa forma um reverso, que permanece obscuro na sociologia oficial.

Refiro-me a todos os âmbitos e aspectos da vida que não se deixam exprimir em dinheiro. E esse reverso do sistema é tudo menos sexualmente neutro, pois dele basicamente as mulheres foram feitas responsáveis.

Trata-se, por um lado, de certas atividades concretas que se dão no horizonte doméstico, para além da produção de mercadorias: cozinhar, lavar roupa, fazer faxina, cuidar dos filhos etc.

Por outro lado, essa tarefa definida como "feminina" transcende a atividade meramente mecânica; a mulher deve ainda criar uma atmosfera agradável e afetuosa, na qual não impere o tom cortante da concorrência como "na vida lá fora", no espaço público capitalista da economia, da política e da ciência.

A mulher, portanto, é responsável pela "dedicação afetiva", de uma certa maneira, pelo "trabalho amoroso" dedicado ao homem e aos filhos. Assim, é uma das "virtudes femininas" ter faro para relações pessoais, ser emotiva e "meiga"; em compensação, o homem deve bancar o intelectual, o durão, alguém pronto para a concorrência. Para tanto, não precisa ser bonito, o que por sua vez é o primeiro dever da mulher.

Ao contrário de opiniões correntes, a modernização não atenuou o patriarcado, antes o agravou.

Foi primeiro a economia capitalista que cindiu de forma tão extrema homem e mulher, como se fossem seres de planetas diferentes.

Nas sociedades pré-modernas ainda não havia uma divisão estrita entre a produção de bens e a gestão doméstica. Por isso as atribuições sexuais eram também menos unívocas; as mulheres tinham o seu próprio lugar na produção agrária e artesanal. A moderna economia de mercado, pelo contrário, transformou a produção de bens numa esfera economicamente autônoma, numa esfera da maximização empresarial abstrata dos lucros, e, com isso, num aspecto central da esfera pública burguesa dominada pelo sexo masculino. Capitalistas e empresários, como bem se sabe, assim como políticos, são sobretudo homens.

Essa nova e agravada repartição funcional entre os sexos na modernidade não podia ser igualitária. As atividades e condutas definidas como "femininas", é verdade, são tão necessárias à sobrevivência da sociedade quanto a produção de bens, que foi deslocada para o campo funcional "masculino" da lógica empresarial.

Mas a cota dessas atividades e condutas na produção geral da sociedade não foi creditada às mulheres. Justamente porque foram feitas responsáveis por tudo o que, pela sua natureza, não se deixa exprimir em dinheiro e, portanto, "não tem valor" segundo os critérios capitalistas, a mulher foi considerada, a exemplo de suas esferas de atividade, de suas qualidades e virtudes imputadas, como inferiores e secundárias.

Claro que, na modernidade, mulheres sempre foram encontradas no ambiente burguês, tanto nas atividades remuneradas da esfera econômica quanto na política, na cultura etc. Mas o estigma de sua depreciação sexual perdurou também nesses âmbitos.

Uma mulher com profissão ou politicamente ativa não se desvencilha das marcas sociais que lhe são imputadas pela cultura dominante masculina.

Ela continua, em princípio, como responsável pela cozinha, pelos filhos e pelo "amor", ou seja, nunca é levada a sério na economia ou na política. E este não é somente um modelo imposto de fora, mas também um aspecto psicologicamente introjetado, cuja origem é a socialização feminina. Como todos sabem, as mulheres são até hoje em menor número que os homens nas atividades profissionais e públicas; muito mais raramente elas alcançam posições de destaque e, em regra, são pior remuneradas.

Aqui vem à tona o dilema do movimento feminista: para realmente superar o patriarcado, ele teria de pôr radicalmente em dúvida todo o modo de produção moderno; não no sentido, claro, de uma idealização retrógrada das relações agrárias, mas como exigência de uma forma de organização fundamentalmente diversa das forças produtivas modernas. Enquanto a racionalidade destrutiva e "masculina" da lógica empresarial não for rompida, serão também perpetuadas as formas de atividade e as pseudoqualidades definidas como inferiores e relegadas à esfera privada. Só para além da cisão estrutural entre uma "lógica do dinheiro", de um lado, e uma "falta de lógica" da vida doméstica, da dedicação pessoal e da emotividade, de outro, poderia florescer uma relação emancipatória entre homens e mulheres.

Um feminismo, ao contrário, que se limite à exigência de "direitos iguais" no interior do modo de produção dominante há necessariamente de sucumbir à forma cindida da vida social.

Sempre caíram em ouvidos moucos o apelo de que os homens devessem participar em igual medida das atividades e condutas cindidas no seio da vida pessoal e familiar. Inversamente, a visão feminista estreita-se cada vez mais, e de forma automática, à esfera econômico-política. A emancipação feminina não é medida pela mudança dos homens no âmbito privado, mas pela mudança das mulheres no âmbito público. O modelo pós-moderno não é mais a mulherzinha dengosa e de miolo mole, mas o tipo andrógino da "mulher de carreira". Ao lado da loiraça oxigenada, da vampe e da mãe extremosa, fiel dona de casa, surge a banqueira que faz jogging e surfa na Internet, em cujo caminho de solteira ela passa, feito um homem, por cima de tudo e de todos.

De fato, pelo menos nas metrópoles do mercado financeiro, parece haver uma sinistra convergência entre os sexos e suas atribuições.0 Enquanto a mulher de profissão é obrigada a demonstrar uma boa dose de rigor e "frieza" emocional para subir na vida, a gestão pós-moderna descobriu, por sua vez, a chamada "inteligência emocional" para o cálculo empresarial e o planejamento individual de sucesso na luta da concorrência.

Em livros e em seminários é oferecido um programa inovador de treinamento para "empresários sensíveis". "Peritos em emoção" e "estudiosos da emoção" surgem aos montes, tagarelam sem parar.

Fala-se tanto de uma "cultura da emoção" quanto de um "empresariado estressado". Trata-se, portanto, de manipular e regular funcionalmente as sensações subjetivas e os sentimentos próprios. A emotividade, circunscrita até hoje à esfera privada e delegada à mulher, deve ser carreada para fins capitalistas e transformada, de certa maneira, numa fórmula de sucesso.

A perversidade desse propósito fica especialmente clara quando a "tecnologia emocional" aparece como gestão empresarial ou política de subalternos. O economista alemão Hans Haumer, por exemplo, fala nesse sentido de um "capital emocional" cuja função é render "suficientes ganhos". A medida para tanto é um "coeficiente emocional de capital", que indicaria a grandeza com que a "tecnologia humana" da dedicação pessoal reverte em benefício do lucro da empresa. Implicado nisso está a exigência, pela "racionalização emocional", da sujeição dos trabalhadores aos reclamos da flexibilidade empresarial, a aceitação de desmandos de toda espécie e o estímulo da produtividade individual. O chefe "emocionalmente inteligente" evita atritos pessoais e passa aos trabalhadores a sensação de que são amados e reconhecidos, mesmo quando ele os trata feito simples material humano. O rendimento do "capital emocional" atingiria o auge de eficiência quando as pessoas, comovidas às lágrimas, agradecessem ao empresário o fato de serem postas no olho da rua.

É nítida, nesse caso, uma reintegração das formas de vida e comportamentos cindidos, mas no sentido errado: o sistema econômico autonomizado começa a tragar as normas, modelos e "qualidades" reservados até agora ao âmbito doméstico e à intimidade, a fim de instrumentalizá-lo no sentido da lógica do dinheiro. Só dentro desses horizontes os homens pós-modernos são mais emocionais que no passado, enquanto a mulher pós-moderna pode agora empregar de modo economicamente funcional suas "virtudes femininas" a-socializadas.

O que na mídia é sugerido como distensão na batalha dos sexos sob a forma de futebol feminino, strip-tease masculino ou casamento de homossexuais, na verdade resulta na redução economicamente funcional da esfera doméstica, antes um reduto dos sentimentos. A androginia consiste em que indivíduos de ambos os sexos, em igual medida, mobilizem "ternura e frieza" para a concorrência e aliem a competência técnica à competência emocional, a fim de manter a todo vapor a máquina de fazer dinheiro.

Se no passado a emotividade doméstica da sociedade capitalista era repartida de maneira desigual, agora ela se acha para sempre destruída. Pois justo nesse aspecto vigora ironicamente a lei da escassez. O que é consumido em dedicação e sentimento pessoal na empresa, no propósito de manter lubrificada a máquina econômica, perde-se para o âmbito cindido da vida privada e da intimidade.

Se as atividades e condutas "femininas", na qualidade de reverso da produção de mercadorias, não forem superadas juntamente com a economia capitalista, sendo antes tragadas por essa própria economia, então o resultado pode ser apenas uma nova dimensão da crise. Os aspectos necessários da vida social, embora não representáveis em forma monetária, não serão assim repartidos igualmente entre homem e mulher; quando muito, virarão ruínas.

O que hoje dá o tom é o modelo televisivo da "mulher dinâmica", que junta carreira e família sob o mesmo teto e ainda por cima se embeleza diariamente para arrancar suspiros como "objeto do desejo". Mas para a maioria isso é exigir muito, algo de todo inviável. A porcentagem das mulheres que consegue esse malabarismo é infimamente baixa. Só uma reduzida minoria de "mulheres de carreira" pode dar-se ao luxo de uma tal ilusão, delegando o fardo da administração do lar, dos cuidados com os filhos etc. a empregadas domésticas (imigrantes, negras, desprivilegiadas), que, por sua vez, deixam de ter tempo para seus próprios filhos. O grosso das mulheres está absurdamente sobrecarregado com a tarefa de responder, ao mesmo tempo, pelo dinheiro, pelas atividades domésticas e pelo "amor".

Na pós-modernidade o patriarcado não some, antes "se embrutece" e se estilhaça em formas múltiplas de barbárie, como escreve a feminista alemã Roswitha Scholz. Este é o mundo que transforma crianças em assassinos e psicopatas.



Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes)..

FONTE: (Jornal "Folha de São Paulo", 09/01/2000)

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A comercialização da alma


Robert Kurz

Foi-se o tempo em que as pessoas de vez em quando ainda ousavam pensar, envergonhadas, em outra coisa senão na sua própria venalidade e na de seu produto. Cada vez mais os indivíduos se transformam, de fato, naquele "homo economicus" que outrora era uma simples imagem da economia política clássica. Com a economização de todas as esferas da vida, a economização da consciência avançou num grau até havia pouco inconcebível -e isso, graças à globalização, nos quatro cantos do mundo, não só nos centros capitalistas. Quando até mesmo amor e sexualidade, tanto na ciência quanto no cotidiano, são pensados cada vez mais como categorias econômicas e estimados segundo critérios econômicos, a "comercialização da alma" parece irresistível. Não há mais, é lícito pensar, nenhum oásis emocional, cultural ou comunitário alheio às garras econômicas: o cálculo orientado pelo lucro abstrato e a política empresarial de custos perfazem, no início do século 21, todo o circuito da existência. Dessa tendência social à plena economização nasceu, evidentemente, um novo tipo de socialização: o modelo da família nuclear fordista (mãe, pai, um filho, um cachorro, um carro) foi reduzido ao modelo do celibatário pós-moderno assexuado ("mônada hermética", um computador, um celular). Aqui estamos às voltas, em certa medida, com indivíduos-concorrência solitários, municiados de alta tecnologia, que, ao mesmo tempo, regrediram socialmente ao estágio do ego infantil: "Célere, flexível, pronta para o trabalho, egoísta, traiçoeira, superficial" -assim descreve uma revista econômica alemã as qualidades essenciais da chamada "geração @". Pessoas com tal estrutura de caráter e forma de consciência teriam sido consideradas ainda nos anos 70 como perturbadas mentais e habilitadas a um tratamento sociopedagógico; hoje foram alçadas a modelo social. Isso porque somente uma combinação de inteligência tecnicamente reduzida a consertos domésticos, absoluto sangue-frio e imaturidade emocional pode possibilitar que a "adaptação ao mercado" por parte da pessoa chegue a extremos -e é justamente essa norma de conduta que requer o capitalismo global em crise. Não é à toa que se vêem com frequência sempre maior figuras púberes com a máscara do sucesso estampada no rosto. Esses são os supostos "fundadores" do novo empresariado na Internet, que trabalham feito loucos e se identificam com sua empresa a ponto de renunciarem a si mesmos. Regalando-se em suas fantasias de onipotência, imaginam mudar a face do mundo, embora seu conteúdo pessoal seja caracterizado por lastimável banalidade e redunde em efeitos tecnológicos mínimos ou em alguma forma de propaganda sem graça. Com o palavrório de entrevistadores pop, eles se vêem fazendo uma "revolução", ao passo que na verdade são acríticos e conformistas ao extremo perante a ordem dominante, num grau jamais alcançado por nenhuma geração nos últimos 200 anos.

Excentricidade estapafúrdia

Claro que semelhante tipo de pobreza intelectual e emocional, que no fundo representa uma curiosidade digna de compaixão, não pode de forma nenhuma se impor como realidade social. A maioria das pessoas não está em condições de promover tal afronta a sua personalidade, ainda que se empenhem. Mas, mesmo a excentricidade intelectual ou espiritual mais estapafúrdia pode parecer um modelo a ser seguido quando a sociedade a eleva a uma espécie de culto. Na sociedade da mídia não há nada que não possa ser em breve intervalo encenado como moda de massas, porque a consciência dos consumidores há muito perdeu o gume e se acha indefesa.

Daí por que, de início, não se "ganha" consciência do "Zeitgeist". Ao contrário, o cego processo de desenvolvimento nas sociedades de mercado produz sempre novas tendências e gostos a princípio pouco claros, farejados pela mídia como cães na trilha de um odor desconhecido. E aos poucos é destilado um perfil que, muitas vezes, cedo é abafado, mas em outras se fortalece como modelo de uma determinada época ou formação do mercado. Isso pode valer para esferas isoladas como política, cultura popular, ideologia, produtos e marcas, incluindo doenças da moda ou demais histerias de massa, mas pode-se tratar também de um fenômeno abrangente, que dita as ordens a toda uma sociedade. Um certo tipo espiritual, cultural e social, que simboliza para um meio social em ascensão o segmento social dirigente, é de súbito guindado então ao trono do "Zeitgeist".

Dali em diante, a tendência antes espontânea se transforma em programa e propaganda. Na mesma medida em que os protagonistas da nova economia, movidos a água mineral, foram forjados como estrelas pop, começaram também as "histórias econômicas" a dominar as ações da indústria de entretenimento e a se fundir numa espécie de novela do neoliberalismo. "Nada mais divertido que a economia" -esse o slogan de um semanário alemão para investidores. Os acontecimentos na Bolsa, áridos e desinteressantes como são, não somente absorveram cada vez mais a economia e a política, mas nos anos 90 foram alçados ainda -para além dos tópicos da programação das emissoras privadas- à cultura pop de ampla difusão: quem não comungar desse espírito, assim dizia a mensagem em todos os canais, é besta e antiquado.

O "daytrader" transformou-se, como figura da mídia, em aventureiro na selva dos mercados, o capitalista impúbere em príncipe de conto de fadas, a esperta marqueteira em heroína da emancipação. Enquanto isso as batalhas dos "global players" pelas fusões e "aquisições hostis" são encenadas como um faroeste, um campeonato de futebol ou um episódio da empreitada espacial. E, nas festas infantis, os petizes (como sugere um anúncio) não se mascaram mais como caubóis, mas como Bill Gates.

Paralelamente à indústria pop, e com coerência lógica, o economismo desenfreado vira programa também na pedagogia. Claro que o sistema educacional e pedagógico sempre seguiu os imperativos da visão de mundo oficial. Mas nesse caso as diretrizes oriundas das elites funcionais permaneceram estáveis por longo intervalo de tempo, e a pedagogia, como instância de socialização que transcendia a família, detinha um inegável monopólio. Hoje, ao contrário, a matriz dos "valores", objetivos e conteúdos a serem transmitidos pelo sistema educacional não somente se tornou insegura e instável como também escolas e universidades foram obliteradas em sua tarefa de socialização pela empresa midiática universal e a seus ditames têm de prestar contas.

E na mídia o fator da economização já avançou bem mais do que na pedagogia: segundo sua forma, se tornaram nesse meio tempo (em sua maioria) puras empresas comerciais e, segundo seu conteúdo, passaram a ser as grandes propagandistas de uma cultura pop orientada pelo dinheiro e pelo capitalismo-cassino -e, portanto, fomentadoras da total economização. Sob a pressão desse desenvolvimento, a própria pedagogia tradicional começa a se dissolver no totalitarismo econômico, estimulada e assistida não só pela mídia, mas também por todas as instituições oficiais.

Por volta de meados dos anos 90 -na maior parte dos países europeus e em conformidade ao modelo anglo-saxão- foram promovidas grandes campanhas para orientar todo o setor pedagógico e educacional para as exigências de uma "economização e comercialização da vida". Numa ação concertada de governos e partidos políticos, bancos e caixas econômicas, cartéis e associações de empresários, comunas, diretorias de escolas e grêmios universitários, abateu-se sobre todos os setores pedagógicos uma onda inaudita de propaganda favorável à mentalidade economista e comercial.

Num amálgama de instrução econômica e lavagem cerebral ideológica, inculca-se a imagem de uma pessoa que vive automaticamente, 24 horas por dia, segundo critérios empresariais e introjeta "o mercado" como destino e oportunidade, como conteúdo de vida e identidade, como inarredável círculo de vida unidimensional. Do diretor de museu ao enfermeiro, do artista ao mendigo nas ruas, todas as atividades e ocupações, mesmo aquelas que até hoje não eram entendidas como "econômicas", devem ser vivenciadas do ponto de vista do marketing, sendo essa visão de mundo exercitada desde a infância. O objetivo é a pessoa como "empreendedor próprio": todas as relações sociais devem se transformar em relações de oferta e demanda, todos os contatos em "contatos com clientes". Essa dissolução da vida no economismo capitalista não substitui simplesmente, como novo modelo abstrato da educação, o cânone tradicional da ética burguesa, mas é também exercitada na prática. No topo do sistema pedagógico e institucional, nas universidades, impôs-se tanto nas pesquisas como no aprendizado de várias disciplinas uma orientação comercial imediata. Numa sociedade economizada, assim diz o postulado, cada disciplina científica, independentemente de seu respectivo conteúdo, é também uma disciplina econômica. Todas as matérias científicas rebaixam-se a subcategorias. Não importa se se trata de linguística, geologia, física, psicologia ou mesmo filosofia: os estudantes devem ser levados desde o início a considerar tudo o quanto aprendem sob o ponto de vista da venalidade. Estudantes de todas as faculdades frequentam cursos econômicos nos quais aprendem como classificar o saber de acordo com sua avaliação pela "economia". Em parte são encorajados a exercitar diretamente a comercialização de conteúdos científicos em simulações empresariais. E não são poucos os estudantes que, de fato, montam seus negócios ainda durante os estudos, para abreviar o caminho que leva do aprendizado ao mercado. O mesmo vale para a pesquisa. Um número crescente de professores executa não somente pesquisas sob encomenda para empresas, mas já considera a própria instituição científica como uma espécie de firma a ser organizada segundo os pontos de vista empresariais. E onde os cientistas não seguem voluntariamente uma tal orientação, isso lhes é exigido cada vez mais pelas instituições estatais: assim é que o governo federal alemão, ante a encarniçada resistência dos interessados, quer obrigar toda pesquisa de vulto a trabalhar segundo critérios de imediata comercialização. Um passo além já foi dado há tempos pelo ensino público. O jogo das Bolsas como matéria de aula faz parte do dia-a-dia de muitas grades curriculares. Em Paris, Gilbert Molinier, professor de filosofia no colégio Auguste Blanqui, protestou no ano passado, numa carta aberta publicada pela imprensa, contra essa pedagogia das Bolsas: "Para grande espanto meu, ouvi dizer que o colégio Auguste Blanqui, em colaboração com um banco, tomou parte num "jogo" chamado "Les Masters de l'Economie". Consta esse jogo de distribuir um portfólio de ações virtuais aos alunos. Estes se obrigam, com a ajuda de seus professores, chamados "padrinhos" (!), a maximizar o valor dessas ações num prazo de três meses. Entre os inúmeros prêmios aos vencedores, o primeiro é uma viagem para conhecer a Bolsa de Nova York, o templo das finanças mundiais... Será que poderiam me dizer qual o interesse pedagógico de semelhante "jogo'? Se nele aprendemos que importa somente o que traz dinheiro, queiram por favor responder a esta pergunta: somos obrigados, por dever de ofício, a ministrar as aulas? Será também esse colégio outro cemitério da cultura?".


Burocratas da educação

Mas professores como Molinier são hoje vistos apenas como "desmancha-prazeres". Por toda a parte as matérias letivas são programadas pelos burocratas da educação para servir de foco a "jovens empresários". Classes inteiras já se exercitam em cursos preparatórios de constituição de empresas, valor de ações e movimentos de mercado. Seguindo o modelo das "firmas escolares" inglesas e irlandesas, a "Fundação Alemã para a Criança e a Juventude" lançou uma campanha em 1997, na cidade de Berlim, intitulada "Espírito Empresarial - Um Ensino": aos alunos cumpria fundar "autênticas" microempresas e aprender a pensar em função dos lucros.

Na mídia circulam histórias de sucesso, daquelas bem kitsch, sobre adolescentes sedentos de lucros, cujas microempresas programam websites, organizam viagens ou vendem sanduíches. Uma conversa fiada e tanto, suspeitosamente afim ao culto propagandista do "operário padrão" no socialismo de Estado. Toda criança que não conseguir acompanhar o pensamento mercantil deve se sentir mal. Nos Estados Unidos, cursos foram criados na escola primária sob o lema "Crianças Aprendem Capitalismo", nos quais meninos de sete a dez anos enfiam na cabeça as regras de compra e venda de ações e como operar derivativos.

E por último a própria escola é abandonada, como instituição, à "liberdade empresarial". Se é possível privatizar infra-estrutura e prisões, por que não o ensino público? O exemplo é dado por empresários, como o norte-americano David Henry, que quer administrar jardins-de-infância como uma rede de fast-food e levá-los à Bolsa. Mas as próprias escolas estatais devem "prover seu sustento" por meio da atividade econômica. Na maioria dos países cai por terra a proibição de anúncios dentro dos estabelecimentos de ensino. Quem, como professor, se habituou a que os corredores e os ginásios da escola sejam usados como área de propaganda, em breve não achará mal nenhum em circular ele mesmo como garoto propaganda. Na imprensa alemã muito se elogiou o diretor de um colégio bávaro que não se considerava mais um "pedagogo", mas sim um "administrador de empresa de porte médio".

O consolo de tudo isso é um só: as instituições de ensino são em toda a parte a lanterna de popa da sociedade, pois são as mais conservadoras de todas as instituições. Quando uma inovação chega à escola e ao ensino em geral, normalmente já se acha fora de moda. Desse prisma, a inflação de economismo nas instituições de ensino talvez indique que a era do comércio totalitário já se esgota.

Fevereiro, 2001.
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O que é a terciarização?

Perspectivas de mudança social.

Robert Kurz

Em uma consciência determinada pelo mercado universal, a percepção dos fenômenos econômicos acaba se atrofiando em todos os âmbitos da vida. Amanhã o contrário de hoje já pode ser "verdadeiro"; mas o conteúdo é de qualquer modo indiferente, já que se trata meramente de "vender" o mais rápido possível. Isso se aplica a idéias e teorias tanto quanto a automóveis e gravatas. Nesse nível, o conceito de "mudança social" não tem realmente mais nenhum sentido. Pois, se esse conceito deve significar alguma coisa de modo geral, ele precisa se referir a um desenvolvimento analiticamente determinável no tempo, ou seja, a uma história das estruturas sociais. A consciência pós-moderna, em total conformidade com o mercado, já não conhece mais nenhum desenvolvimento histórico; limita-se à arbitrariedade de tendências incoerentes. No lugar da teoria social crítica aparece em aumento, por esse motivo, a "pesquisa de tendências".

Se desse modo nenhuma diferença entre estruturas objetivas e percepção subjetiva continua a ser pensável, apaga-se igualmente a capacidade de refletir, numa perspectiva ainda intelectual, as próprias relações sociais em geral. Nem sequer uma ideologia apologética em sentido estrito é possível nesse caso, pois mesmo esta pressupõe um conceito de desenvolvimento objetivo, ainda que falso, meramente legitimador. Porém, visto que uma sociedade dilacerada por autocontradições como a do mercado totalitário não pode de forma nenhuma passar sem uma ideologia legitimadora, o pensamento pós-moderno recorre, no aspecto econômico e sociológico, a teorias mais antigas, às quais é inerente ainda uma pretensão tradicional de objetividade. O fato de isso ser incoerente não causa nenhum dano; pois incoerência significa, no pensamento pós-moderno, seja de que jeito for, uma virtude.

Embora as teorias pós-modernas rechacem todo determinismo estrutural, as análises de tendências conceitualmente redutoras continuam a se mover, por isso, com base em teorias sociológicas da "mudança social", desenvolvidas em termos de determinismo estrutural. Explícita ou implicitamente, também as conjunturas ideológicas pós-modernas pressupõem uma determinada hipótese sobre o desenvolvimento social objetivo com vista aos três setores basais da reprodução social (agricultura, indústria e serviços). É a imagem fantasmática da outrora festejada "terciarização" que ainda determina o discurso sociológico, mesmo que sejam negados os pressupostos metodológicos das ciências sociais clássicas que suscitaram o teorema dessa terciarização. O método é criticado, enquanto se enfia o resultado substantivo no próprio bolso.

A sociedade - é o que se lê nessas teorias que entrementes se tornaram clássicas - desenvolve-se por uma transformação histórica do setor agrário primário para o setor de serviços terciário, passando pelo setor industrial secundário. Por conseguinte, a "ocupação" da força de trabalho é gradativamente reestruturada. No começo, certamente, isso está ligado a rupturas estruturais dolorosas, mas por fim resulta numa nova "ocupação plena" e numa nova prosperidade secular. Desde então a teoria econômica e sociológica da terciarização envelheceu algumas décadas, e seria preciso traçar um resumo que, no entanto, não é de jeito nenhum possível com os meios intelectuais do pensamento pós-moderno. Vista com superficialidade, a tese da terciarização se confirma empiricamente, embora de maneira totalmente disparatada e em oposição às hipóteses otimistas originárias. O que não se confirmou é o surto secular de ocupação e prosperidade, aguardado com a passagem para a terciarização. Pelo contrário, tudo indica que a terciarização real está vinculada a um processo de crise e atrofiamento econômico mundial.

O problema é anuviado pelo fato de o setor terciário, diferentemente do setor agrário e industrial, não poder ser em absoluto definido de modo homogêneo. Sob a rubrica "serviços" podem ser reunidas atividades extremamente distintas, bem distantes umas das outras. Apesar disso, dois grandes grupos saltam à vista. Por um lado, trata-se de domínios com uma qualificação especialmente alta, como a medicina, a educação, a pedagogia, a ciência, a cultura etc. Por outro, temos de lidar com âmbitos particularmente não-qualificados de domésticos e assistentes baratos das empresas de serviço (restaurantes, limpeza, serviços pessoais e assim por diante). Fritar hambúrgueres, encher os sacos nos supermercados, vender cadarços de sapato na rua ou lavar os vidros dos carros parados no semáforo são consideradas atividades do setor terciário tanto quanto instruir empresários, educar crianças ou organizar viagens de estudos. A empregada doméstica e o arrumador de automóveis pertencem à mesma categoria que o médico e o artista.

Essa discrepância pareceu por algum tempo marcar também a diferença social entre países ocidentais e o Terceiro Mundo. É verdade que, nos países do Sul global, a agricultura foi, à medida que produzia para o mercado mundial, tão mecanizada e cientificizada quanto no Ocidente. Mas, em contraste com os países do centro capitalista, a passagem do setor agrário primário para o industrial secundário já não teve aqui nenhum êxito ou o teve de maneira muito imperfeita. Foi justamente o fracasso da "industrialização recuperadora" que produziu uma situação paradoxal, segundo os critérios da teoria do desenvolvimento dos três setores basais: por um lado, uma parte da sociedade foi relançada a uma produção de subsistência agrária primitiva, que vegeta na vizinhança da agroindústria direcionada ao mercado mundial; por outro lado, surgiu uma terciarização de miséria em massa nas aglomerações urbanas, que incham monstruosamente.

Nos centros ocidentais, ao contrário, os prognósticos otimistas da terciarização pareciam se confirmar de início. Certamente, já nos anos 70, começou também no Ocidente a queda social rumo ao desemprego estrutural em massa. Mas esse desenvolvimento negativo deveria ser aparado por uma elaboração social do problema: quase se acreditou poder colocar atrás de todo desempregado um assistente social. A "indústria da assistência" para os "caídos" parecia se tornar um próprio fator de crescimento. Em paralelo com a pedagogia social, o sistema da assistência médica também se expandiu. Ao mesmo tempo, centros de lazer, locais de encontro, escolas de reformação e novos sistemas de qualificação profissional foram colocados a caminho. "Ofensivas formativas", "sociedades do lazer" e "pedagogização da vida" foram as palavras-chave do espírito do tempo ocidental até os anos 80. Numa escala substantivamente menor, houve tendências semelhantes também no Terceiro Mundo, mas tão-somente como terciarização de luxo para uma minoria, à qual se contrapunha a terciarização de miséria da maioria. No Ocidente, em contrapartida, parecia se tratar de uma mudança estrutural "para todos".

Mas essa espécie de terciarização tinha um "defeito estético" decisivo: em termos capitalistas, era "improdutiva", ou seja, não constituía nenhum surto de crescimento comercial, mas antes precisava ser alimentada por compensações estatais e organizadas na maior parte em forma de serviços públicos. Isso não combinava com a contração econômica do crescimento industrial. A maravilhosa sociedade da formação, da educação, do lazer e da assistência só pôde ser mantida em vida durante algum tempo por meio do endividamento dramático e crescente do Estado, até que finalmente a ilusão explodiu e começou a demolição dos setores-suporte pretensamente novos da sociedade de serviços.

Nos anos 90, o capitalismo global gerou duas opções para reagir à crise da terciarização. A palavra-chave "privatização" sugeria que os setores terciários não mais reproduzíveis por meio do Estado, incluindo a infra-estrutura inteira, podiam ser comutados por empresas lucrativas privadas. Ao mesmo tempo, a nova economia, a versão "high-tech" comercial dos serviços (capitalismo de internet), deveria trazer crescimento rendoso e ocupação. As duas opções, como se sabe, já fracassaram. A nova economia se revelou mera bolha financeira, ao passo que a ocupação e o crescimento real desse setor se limitaram a um microdomínio. Os ex-serviços públicos privatizados são igualmente deixados de lado como suportes de crescimento capitalista. Uma medicina ou uma formação sustentadas em Bolsas de Valores rapidamente se reduzem à clientela privada solvente, enquanto a maior parte da estrutura nesses âmbitos acaba falindo. Em muitas regiões do Terceiro Mundo, a infra-estrutura social inteira entra em colapso. De forma atenuada, uma tendência análoga se delineia também nos países ocidentais.

Das antigas promessas de uma terciarização progressista, sob o nome de sociedade da cultura, da assistência e do lazer, não restou nada. Inclusive o turismo foi apanhado pela crise. Em vez disso, agora é a terciarização de miséria do Terceiro Mundo que se torna modelo para os centros do mercado mundial. Impudentes, nesse meio tempo os discursos políticos e socioeconômicos ocidentais passaram a apostar, como última opção, na existência em massa de domésticos pessoais baratos, em semelhança com o capitalismo primevo. É imaginável uma sociedade "high-tech" planetária de poucos capitalistas financeiros e empresários transnacionais, por um lado, e bilhões de empregadas domésticas, motoristas, camareiras, damas de companhia, servos domésticos, pajens etc., por outro? Isso parece mais ficção científica de péssima qualidade. É verdade que há no Terceiro Mundo uma tradição, herdada do colonialismo, de relações paternalistas de serviço doméstico, principalmente onde imperava a escravidão nos tempos coloniais. Mas, sob as condições do mercado universal, relações pessoais de dependência entre senhor e escravo, como as que existiram no capitalismo primevo como ressalto da sociedade feudal, já não são mais possíveis em grande escala. Pelo contrário, na qualidade de empresas comerciais impessoais, os serviços domésticos podem se tornar o suporte de crescimento tão pouco quanto a educação e a medicina privatizadas. Para tanto a demanda solvente não é grande o suficiente, pois com a crise da terceira revolução industrial também a classe média social acabou derretendo. Os bilhões de seres humano que agora, em todas as partes do mundo, encalham na terciarização de miséria não passam na realidade de mendigos e decaídos melhores, para os quais não há mais nenhum futuro capitalista.

O desastre histórico da terciarização remete ao problema-tabu da forma social. Vista de uma perspectiva puramente técnica e material, a produtividade suscitada pela terceira revolução industrial permitiria de fato que a humanidade aplicasse apenas uma parcela relativamente pequena de seu tempo em produção agrária e industrial, a fim de se ocupar principalmente com formação, educação, assistência, medicina, cultura etc. A primeira parte desse programa se cumpre: um número cada vez menor de pessoas é empregado no setor primário e no secundário. Mas a segunda parte fracassa: a reestruturação dos recursos humanos no setor terciário não é pensável em termos capitalistas. Nós tivemos, nesse meio tempo, a prova prática disso.

A doutrina econômica do desenvolvimento dos três setores apresentava desde o início a falha de que ele era historicamente inconcebível. Pois esse desenvolvimento não se realiza precisamente no interior das estruturas capitalistas "eternas". A sociedade agrária pré-moderna não se baseava na valorização do capital monetário. Por isso, o deslocamento do centro gravitacional da reprodução social do setor agrário para o industrial foi uma ruptura com a forma até então válida de relações pessoais de dependência, removida depois pela forma impessoal do capital monetário. Também a passagem da sociedade da indústria para a sociedade de serviços exige agora a ruptura com a forma do moderno sistema produtor de mercadorias e o surgimento de uma ordem qualitativamente nova, diferente.

Essa ruptura necessária com a forma social básica tem também uma dimensão simbólica e cultural. Desde a revolução neolítica, a sociedade agrária possuía uma "visão de mundo orgânica", na qual o processo sociocultural de "metabolismo com a natureza" (Marx) se referia primariamente às plantas e aos animais. Essa visão de mundo não era tão suave e "ecológica" como sugerem hoje muitas ideologias regressivas. Tratava-se antes de uma relação de dominação que reduzia o ser humano à sua função orgânica, como um "animal falante", por meio da forma da dependência pessoal entre escravidão e feudalismo.

A sociedade industrial do moderno sistema produtor de mercadorias, por sua vez, possuía uma "visão de mundo mecânica", na qual o processo sociocultural de "metabolismo com a natureza" se referia primariamente à matéria física morta (máquinas e mercadorias industriais). Essa visão de mundo reduzia o ser humano a um robô funcional mecânico por meio da forma impessoal do dinheiro.

A sociedade terciária ainda desconhecida, situada além da modernidade mecânica, precisa de uma "visão de mundo social" na qual o processo de "metabolismo com a natureza" se refere primariamente, pela primeira vez, ao próprio ser humano, no qual, portanto, ele se torna o processo de metabolismo da sociedade consigo mesma. "A raiz do homem é o homem" (Marx). Essa verdade só agora urge uma forma social. Na figura da física quântica, a ciência natural já abandonou a visão de mundo mecânica; e não é por acaso que revolução microeletrônica, baseando-se na física quântica, leva o capitalismo "ad absurdum". Se a humanidade não quiser findar, ela terá de superar o reducionismo orgânico e mecânico e se relacionar de maneira humana consigo própria. Só então ela poderá se relacionar também de maneira humana com a natureza biológica e física.

Original Was ist Tertiarisierung? in www.exit-online.org. Publicado na Folha de S. Paulo em 16.11.2003, com tradução de Luiz Repa, sob o título A ficção científica da terceirização.



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A DEGRADAÇÃO DA CULTURA

Robert Kurz



Hoje, para a maioria das pessoas, uma crítica fundamental da economia moderna parece tão insensata quanto a tentativa de passar pela parede e não pela porta. Essa própria economia, contemplada à distância, revela todos os traços da loucura, considerados porém como normais, já que os critérios da máquina capitalista estão universalmente internalizados. Quando os loucos estão em maioria, a loucura é dever do cidadão. Sob tal pressão, a crítica social retira-se do campo da economia e sai em busca de evasivas. A esquerda, em especial, não vê com bons olhos quando se põe o dedo na ferida das relações econômicas reinantes: é penoso relembrar a própria capitulação incondicional. Desarmada teoricamente, a esquerda prefere denunciar toda crítica séria do mercado, do dinheiro e do fetichismo da mercadoria como “economismo” antiquado e infrutífero, há muito ultrapassado.

E com o que se ocupa uma crítica social já indigna desse nome? Antes, o grande refúgio era a política. Pretendia-se que todas as questões do sistema produtor de mercadorias (e portanto também a economia) fossem reguladas pelo “discurso racional” dos membros da sociedade, no interior das instituições políticas. Pouco resta dessa esperança. A política há tempos foi degradada a uma esfera secundária da economia totalitária. Hoje, o fim em si mesmo do capitalismo devorou a suposta “autonomia relativa” da política. Por isso, na pós-modernidade, a crítica social refugia-se na cultura, abandonando a política, assim como antes buscara refúgio na política, abandonando a economia. A esquerda pós-moderna tornou-se, sob todos os aspectos, “culturalista” e imagina-se, com toda seriedade, capaz de atuar “subversivamente” no âmbito da arte, da cultura de massas, da mídia e da teoria da comunicação, enquanto deixa praticamente de lado a economia capitalista e a menciona somente de passagem, com evidente enfado.

Mas sejam quais forem os domínios sociais em que se refugia uma esquerda que calou a crítica da economia, a economia capitalista está sempre presente e lhe acena com um sorriso irônico. É verdade que essa “economia divorciou-se da sociedade”, como escreve a crítica social francesa Viviane Forrester em seu livro sobre o “Terror da economia”. Mas o capitalismo só esqueceu a sociedade no sentido social, sem contudo deixar que lhe escapasse das garras. Ao contrário, a economia totalitária vela zelosamente para que nada aconteça sob o sol que não sirva diretamente ao fim em si da maximização dos lucros. E isso hoje vale também para a cultura.

A economia moderna surgiu à medida que a esfera capitalista da produção industrial se dissociou dos demais âmbitos da vida. A cultura, no sentido amplo, parecia ser uma atividade “extra-econômica”, banida, como simples subproduto da vida, para o chamado “tempo livre”. Essa foi a primeira degradação da cultura na modernidade: ela se transformou num assunto pouco sério, num simples “momento de descanso”. Mas tão logo o capitalismo dominou integralmente a reprodução material, seu apetite insaciável estendeu-se também às configurações imateriais da vida e, na medida do possível, começou a recolher peça por peça os âmbitos dissociados e submetê-los à sua peculiar racionalidade empresarial. Essa foi a segunda degradação da cultura: ela própria foi industrializada.

Repetiu-se, com isso, o que Marx dissera sobre as mudanças da produção material, pois a cultura também passou pela transição do estágio “formal” para o estágio “real” de subsunção ao capital: se, num primeiro instante, os bens culturais eram compreendidos apenas exteriormente e a posteriori como objetos de compra e venda pela lógica do dinheiro, no decorrer do século 20 a sua própria produção passou a depender cada vez mais, de forma a priori, de critérios capitalistas. O capital não queria mais ser apenas o agente da circulação de bens culturais, mas dominar todo o processo de reprodução. Arte e cultura de massas, ciência e esporte, religião e erotismo passaram a ser produzidos cada vez mais como carros, geladeiras ou sabões em pó. Com isso, os produtores culturais também perderam sua “autonomia relativa”. A produção de canções e romances, de descobertas científicas e reflexões teóricas, de filmes, quadros e sinfonias, de eventos esportivos e espirituais só podia ocorrer como produção de capital (mais-valia). Essa foi a terceira degradação do capital.

Contudo, na época de prosperidade após a Segunda Guerra Mundial, formou-se ainda um pára-choques social que, em muitos países, protegeu parte da cultura contra o impacto devastador da economia. Falo do mecanismo da redistribuição keynesiana. O deficit spending alimentava não apenas a produção de armamentos militares e o Estado Social, mas também certos âmbitos da cultura. Não há dúvida que a subvenção estatal impôs limites estritos à autonomia da cultura. Mas o controle do Estado era aberto à discussão pública, e não tirânico: em caso de conflito, pode-se negociar com funcionários e políticos, mas não com as “leis do mercado”. Por meio do “keynesianismo cultural” uma parte da produção cultural dependia apenas indiretamente da lógica do dinheiro. Enquanto emissoras de rádio e televisão, universidades e galerias, projetos artísticos e teóricos eram subsidiados ou promovidos pelo Estado, não era preciso submeter-se diretamente aos critérios empresariais; havia um certo campo de ação para a reflexão crítica, os experimentos e as “artes improdutivas” minoritárias, sem que os ameaçassem as sanções materiais.

Essa situação modificou-se essencialmente a partir do início da nova crise mundial e com a respectiva campanha neoliberal. O fim do socialismo e do keynesianismo abalou fortemente a cultura, pois ela se viu privada de seus meios. Os Estados não se desarmaram militarmente, mas se desarmaram culturalmente. Numa pequena parcela do espectro cultural, o sponsoring privado tomou o lugar dos incentivos estatais. Não há mais direitos sociais e civis, mas apenas o arbítrio caritativo dos ganhadores do mercado. Os produtores culturais vêem-se expostos aos humores pessoais dos magnatas do capital e dos mandarins da administração, para cujas esposas eles devem servir de hobby e passatempo. Como os bobos da corte e os serviçais da Idade Média, eles são obrigados a portar os logótipos e emblemas de seus senhores, a fim de serem úteis ao marketing. Essa é a quarta degradação da cultura.

Para a maioria esmagadora das artes, ciências e atividades culturais de todo tipo, porém, a questão do humilhante e arbitrário sponsoring privado não é nem sequer aventada. Hoje elas se encontram, numa proporção inaudita, expostas diretamente, sem filtro algum, aos mecanismos do mercado. Institutos científicos e associações esportivas têm de recorrer à Bolsa, universidades e teatros têm de render lucros, literatura e filosofia têm de resistir aos critérios da produção de massas. Nos grandes veículos de distribuição, só logra êxito o que se presta como oferta ao lazer dos escravos do mercado. Daí as distorções grotescas na gratificação das produções culturais: no futebol e no tênis, os jogadores recebem milhões, ao passo que os produtores de crítica, reflexão, representação e interpretação do mundo são rebaixados ao nível de limpadores de sanitários. Com a racionalização capitalista da mídia, são transpostos para a esfera cultural os salários de fome, o outsourcing e a escravidão empresarial.

O resultado só pode ser a destruição do conteúdo qualitativo da cultura. Miseravelmente pagos, socialmente degradados e acossados, os trabalhadores da cultura e da mídia produzem, é óbvio, bens igualmente miseráveis; isso vale tanto para esse campo quanto para todos os outros. E a redução brutal ao horizonte de tempo abreviado e à distribuição de massa do mercado elimina tudo o que pretende ser mais do que um produto descartável. Nas livrarias, em breve, só encontraremos livros pornográficos, esotéricos e de receitas, para a classe média depravada. Mas também nas ciências a lógica do mercado deixa um rastro de destruição. Como, por sua essência, não podem assumir a forma mercantil, as ciências sociais e do espírito são arrancadas da empresa acadêmica como ervas daninhas. Sobretudo os institutos históricos padecem com o corte nas suas dotações, pois o mercado não precisa mais de passado; a ciência natural substitui-se em definitivo à filosofia e à teoria social. Na ciência natural, contudo, a pesquisa “sem objetivo” é depreciada e estrangulada em proveito da pesquisa de encomenda, mais rentável ao capital.

Essas tendências, assim como já haviam degradado a subjetividade religiosa ou política, levam necessariamente ao colapso da subjetividade cultural na sociedade burguesa, sem substituí-la por algo novo. Hoje, nem mesmo um conservador ainda “é” conservador, mas somente alguém que compra o conservadorismo como se fosse molho de tomate ou cadarços. Mesmo o atual papa, por ortodoxo que seja, revela-se um especialista de marketing para eventos religiosos; em breve, as religiões e as seitas lançarão títulos nas Bolsas e se pautarão pelos princípios do shareholder value. Os artistas e cientistas submetem-se ao mesmo aviltamento de sua personalidade. Quando pensam e produzem, com pressurosa obediência, segundo as categorias a priori da venalidade, já perderam o pé de seu objeto e podem somente ratificar a sua tarefa, como o célebre pintor Baselitz, ao voltar seus quadros para a parede, num lampejo de lucidez.

O “economismo” não é uma idéia equivocada e unilateral de marxistas incorrigíveis, mas a tendência real da ordem social reinante ao totalitarismo econômico, que adquire na crise atual o seu talvez maior e derradeiro surto. Mas o capitalismo não pode firmar-se sobre as suas próprias bases. Do mesmo modo que a indústria farmacêutica perderá sua grande fonte de saber e de material se as florestas tropicais forem devastadas, assim também a indústria da cultura se esgotará quando não puder mais sangrar as subculturas, uma vez que a atividade não-comercial das massas acha-se definitivamente morta. Uma sociedade que consta apenas de vendedores futriqueiros e insistentes e que já é incapaz de refletir sobre si mesma tornou-se insustentável também em termos sociais e econômicos.

Para os produtores da cultura, da arte e do pensamento reflexivo não há mais motivo para servir de legitimação a um capitalismo autoritário, que remunera mal, e sair à busca de elogios no deserto pós-moderno do mercado. Se possuem algum vestígio de amor-próprio, eles acabarão por encerrar-se em si mesmos e, pelo menos em seu íntimo, confessar sua animosidade irreconciliável em relação aos critérios do mercado. Essa postura não deve ser passiva, mas ativa. Os produtores culturais talvez devessem associar-se em grupos, sindicatos, guildas, clubes e ligas anti-mercado, preocupados não em vender, mas em salvar os recursos culturais da barbárie do mercado. Tal postura será diversa do conservadorismo cultural – sempre acorde com o poder –, sobretudo pelo fato de ligar-se aos humilhados e ofendidos e dar expressão cultural aos sofrimentos sociais, ao invés de harmonizar-se com o alegre positivismo dos oportunistas pós-modernos.

Original Die Degradation der Kultur in http://www.exit-online.org/.

Fonte: Publicado na Folha de São Paulo de 15.03.1998 com o título Cultura degradada e tradução de José Marcos Macedo

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ECONOMIA TOTALITÁRIA E PARANÓIA DO TERROR
A pulsão de morte da razão capitalista


Robert Kurz


Na história da humanidade, catástrofes de grande porte e simbologia sempre serviram de ocasião para um momento de sensibilização em que os poderosos do mundo se despojam de sua hybris, as sociedades refletem sobre si mesmas e reconhecem seus limites. Nada disso se tem podido observar na sociedade capitalista mundial após o ataque kamikase aos centros nervosos dos E.U.A. Chega quase a parecer que o bárbaro atentado, vindo das trevas da irracionalidade, teria destruído não apenas o World Trade Center, mas também os últimos resquícios da capacidade de discernimento da opinião pública democrática mundial. Quanto mais violentamente lhe apontam seus limites, mais fortemente ela se agarra a seu poder e mais cegamente cultiva sua unidimensionalidade.

Depois do ataque terrorista, o funcionalismo de elite, a mídia e o populacho do sistema global de "economia de mercado e democracia" estão se comportando como se fossem todos atores e figurantes numa encenação real do filme "Independence Day". Hollywood pressentiu um acontecimento apocalíptico e o filmou como representação de patriotismo kitsch e moral jeca. Assim a indústria cultural banalizou e tornou irreal a realidade da catástrofe antes que esta se tornasse mesmo real. O luto espontâneo e a perplexidade dão lugar aos falsos rituais de um padrão programado de reação, que impossibilita a compreensão de qualquer nexo interno entre o terrorismo e a ordem dominante.

Fica claro o endurecimento da consciência democrática oficial, transformada em furiosa falta de ponderação, quando o ator diletante presidente dos Estados Unidos jura uma "luta monumental do bem contra o mal". Retratando o mundo assim de modo naïf, as próprias contradições internas são projetadas para fora. É o esquema elementar de toda ideologia: em vez de revelar o contexto repleto de implicações em que se está envolvido, é preciso encontrar uma causa exterior para os acontecimentos e definir um inimigo externo. Mas, diferentemente dos mundos de sonho juvenis de Hollywood, não haverá happy end na dura realidade da sociedade mundial que se despedaça.

No filme "Independence Day", como convém, são extraterrestres que atacam a própria "terra de Deus" e, claro, acabam sendo heroicamente rechaçados. Esse papel de alienígena, fora do mundo, fora do capitalismo e fora da razão, pelo vistos agora deverá ser assumido pelo islamismo militante, como se se tratasse de uma cultura estranha e recém-descoberta que se revela uma ameaça tenebrosa. Em busca da origem do mal, folheia-se o Alcorão, como se ali se pudesse encontrar os motivos para os atos de outro modo inexplicáveis.

Intelectuais ocidentais perturbados declaram mais do que depressa, sem a menor vergonha, considerar o terrorismo expressão de uma consciência "pré-moderna", que teria desconhecido o Iluminismo e por isso teria de "satanizar", com atos de ódio cego, a maravilhosa "liberdade de autodeterminação" ocidental, o mercado livre, a ordem liberal e, enfim, tudo o que há de bom e de belo na civilização ocidental. Como se nunca tivesse havido uma reflexão intelectual sobre a "dialética do Iluminismo" e como se o conceito liberal de progresso não tivesse caído em descrédito há tanto tempo na catastrófica história do século 20, reaparece como fantasma, no desconcerto diante do ato inédito de insânia, a filosofia burguesa da história dos séculos 18 e 19, ao mesmo tempo arrogante e ignorante. Na tentativa forçada de atribuir a nova dimensão do terror a um ser exterior, o bom senso ocidental-democrático definitivamente despenca para o mais baixo nível intelectual.

Porém não se pode manter com tanta facilidade essa definição distorcida do nexo que há de fato entre todos os acontecimentos na sociedade globalizada: após 500 anos de sangrenta história colonial e imperialista, após um século de uma industrialização estatal-burocrática fracassada e modernização atrasada, após 50 anos de integração destrutiva no mercado mundial e dez anos sob o absurdo domínio do novo capital financeiro transnacional, não há mais, na verdade, nenhum território exótico oriental que se possa conceber como estrangeiro e externo. Tudo o que acontece hoje é produto imediato ou mediado pelo sistema mundial unificado de modo forçado. O capital one world é o próprio ventre gestante do megaterror.

Foi a ideologia militante do totalitarismo econômico ocidental que preparou o terreno para os igualmente militantes desvarios neo-ideológicos. O fim da era do capitalismo de Estado e de suas idéias foi tomado como ensejo para silenciar a própria teoria crítica. As contradições da lógica capitalista não puderam mais ser discutidas, foram declaradas inexistentes, e a questão da emancipação social para além do sistema produtor de mercadorias, considerada irrelevante. Com a suposta vitória definitiva do princípio de mercado e concorrência, a capacidade de reação intelectual das sociedades ocidentais começou a se extinguir. Os homens deste mundo deveriam tornar-se idênticos em suas funções capitalistas, embora a maioria já estivesse carimbada como "supérflua".

Enquanto os mecanismos de crise do capitalismo financeiro do shareholder value lançavam milhões de pessoas à pobreza e ao desespero, a maioria da intelligentsia global entoava, como a escarnecer, o canto do otimismo democrático da economia de mercado. Agora estão recebendo a conta: quando a razão crítica se cala, é o ódio assassino que toma o seu lugar. A insustentabilidade objetiva dos modos de produção e de vida vigentes já não se impõe mais de maneira racional, mas irracional. Assim, o recuo da crítica teórica foi seguido pela marcha do fundamentalismo religioso e etno-racista. Enquanto a crítica emancipatória aos fundamentos do capitalismo não se reorganizar, os acessos de paranóia social e ideológica deverão transformar-se no único instrumento para medir as proporções que as contradições da sociedade mundial atingiram. Nessas condições, o novo tipo de megaterror nos EUA significa que a crise do sistema capitalista globalizado, oficialmente ignorada e desprezada, assumiu uma nova dimensão.

O que parece uma fúria incomum do terror encontrou solo fértil não somente na economia de mercado one world mas também foi cultivada pelos aparatos de poder repressor das democracias ocidentais que agora querem lavar as mãos. É gente que saiu errante da Guerra Fria e das guerras de ordenamento mundial democrático que se seguiram. Saddam Hussein adquiriu no Ocidente os armamentos usados contra o regime iraniano dos mulás, que por sua vez saía de baixo das ruínas de modernização do regime do xá. Os integrantes do Taleban foram paparicados, instruídos e armados com eficientes mísseis anti-aéreos, porque na época todos aqueles que se pusessem contra a União Soviética eram contados no reino dos "bons". E Osama bin Laden, com sua mente insana, agora transformado em figura mítica do mal, pela mesma razão, entrou inicialmente como "predileto" dos serviços secretos ocidentais na arena mundial da paranóia abastecida de munição. O imperialismo "de segurança" da NATO, que quer a todo o custo manter sob controle a humanidade já insuscetível de reprodução pelo capital, se utiliza ainda hoje de regimes tolerantes com a tortura e de diversas formas de insânia, na Turquia, na Arábia Saudita, Marrocos, Paquistão, Colômbia etc. etc. Mas, como o mundo vai se desmantelando, ganha vida própria um aborto da natureza após outro. O "predileto" de hoje é sempre o "monstro incompreensível" de amanhã.

Os príncipes do terror, protagonistas de guerras santas e milícias formadas de clãs, não são, no entanto, de modo nenhum meras forças instrumentalizadas fora do Ocidente – que agora começariam a fugir a seu controle. Mesmo suas condições psíquicas não são "medievais", mas sim pós-modernas. As semelhanças estruturais entre a consciência da "civilização" da economia de mercado e a consciência dos terroristas islâmicos não devem causar tanto espanto, se pensarmos que a lógica do capital consiste num irracional fim em si mesmo que representa nada menos do que religião secularizada. Também o totalitarismo econômico divide o mundo entre "fiéis" e "infiéis". A vigente "civilização" do dinheiro não é capaz de analisar racionalmente a origem do terror, porque afinal teria que questionar a si mesma. Assim, se o supostamente esclarecido Ocidente define o islamismo como "obra do demônio", o mesmo ocorre vice-versa. As imagens dicotômicas irracionais de "bem" e "mal" igualam-se até beirar o ridículo.

O que se passa na cabeça dos líderes terroristas não é substancialmente mais bizarro do que o modo como os managers da economia global de mercado percebem e classificam o ser humano e a natureza sob a pressão destrutiva do cálculo abstrato da economia empresarial. O terror religioso golpeia, cego e insensato, da mesma maneira que a "mão invisível" da concorrência anônima, sob cujo domínio permanentemente milhões de crianças morrem de fome – só para dar um exemplo, que põe sob um foco de luz bem estranha o comovido culto que se celebra às vítimas de Manhattan.

Quando a mídia revela em suas entrelinhas uma admiração secreta pelas capacidades técnicas e logísticas, de que não se tinha idéia, demonstradas pelos terroristas, também aí fica claro como os dois lados são quase almas gêmeas: ambos são igualmente adeptos da "razão instrumental". Pois a ambos se aplica aquilo que o estranho capitão Ahab diz, na Moby Dick de Melville, grande parábola da modernidade: Todos os meus meios são sensatos, só meu objetivo é desvairado. A economia do terror e o terror da economia correspondem-se como imagens em um espelho. Desse modo, o autor de um atentado suicida se mostra como a consequência lógica do indivíduo isolado na concorrência universal, que não lhe oferece perspectivas. O que então se revela é a pulsão de morte do sujeito capitalista. E que essa pulsão de morte é inerente à própria consciência ocidental, e não apenas desencadeado pela desesperança intelectual do sistema totalitário de mercado, é o que dão provas os casos frequentes de psicopatas que invadem escolas norte-americanas para assassinar em série filhos da classe média e o atentado de Oklahoma, reconhecidamente um produto genuíno do delírio interior dos Estados Unidos. O ser humano reduzido a funções econômicas enlouquece da mesma maneira que aquele cuspido como "supérfluo" pelo processo de valorização. A razão instrumental dispensa seus filhos.

Como o núcleo irracional de sua ideologia é tal e qual o do fundamentalismo islâmico, o capitalismo nada mais pode que conclamar a uma cruzada, à "guerra santa" da "civilização" ocidental. Somente vítimas como as colunistas mais famosas dos EUA, corretores em Manhattan e cidadãos da liberdade ocidental são vistas como vítimas reais e pranteadas em missas à sua memória. Por outro lado, os civis iraquianos mortos e crianças sérvias esfaceladas por bombas atiradas de uma altura de dez quilômetros, porque a pele preciosa dos pilotos americanos não podia sofrer um arranhão, não aparecem como vítimas humanas, e sim como "efeitos colaterais". Mesmo diante dos mortos o apartheid global não cessa. O conceito ocidental de direitos humanos contém como pré-requisito tácito saber se o indivíduo tem valor de venda e poder de compra. Quem não preenche esses critérios na verdade não é mais um ser humano, mas uma porção de biomassa. Dessa maneira, o fundamentalismo ocidental divide o mundo no "reino" supostamente civilizado, de um lado, e nos "novos bárbaros", de outro – como o jornalista francês Jean Rufin já constatava no início dos anos 90.

O império balança. Dentro de poucos meses o mito da invulnerabilidade econômica será desmascarado pela crise da new econonmy. O mito da invulnerabilidade militar está agora em chamas com o Pentágono. O pensamento utilitário do funcionalismo de elite tenta tirar proveito até mesmo dessa catástrofe. Pois, com os mercados financeiros despencando, consegue-se de repente conteúdo para uma versão forjada dos fatos: não é a ordem vigente que está obsoleta, se outras bolhas financeiras estão estourando e a economia mundial de mercado porventura está entrando em colapso. O "choque externo" do ataque terrorista, sim, é que teria sido a causa disso – segundo Wim Duisenberg, presidente do Banco Central Europeu. O fracasso do sistema é redefinido pela maldade externa dos outros, "infiéis". Mas isso não consegue apagar o acontecido.

Ao mesmo tempo, espalha-se uma onda de propaganda de guerra igualmente histérica e sentimentalóide, como se estivéssemos vivendo o agosto de 1914. Por toda parte estão se apresentando voluntários aos montes, em meio ao crash sobem as ações da indústria de armamento, quase já se começa a desejar uma situação de cruzada. Mas grupos clandestinos de homens armados de facas e lâminas de cortar tapete não exigem a mobilização das massas e o agrupamento de todas as forças sociais. O terror não representa nenhum império opositor externo, com status de Estado e economia de guerra. Ele é a própria nêmesis interior do capital globalizado. Por isso não pode provocar um novo boom armamentista. Também no âmbito militar a cruzada vai dar em nada. Aconteçam possíveis ataques de retaliação por parte dos EUA a dez quilômetros de altitude, como infelizmente é de costume, dizimando uma população civil qualquer, ou saiam tropas terrestres, mesmo sofrendo muitas baixas, vagando por distantes regiões montanhosas, como o Exército da União Soviética teve de experimentar no Afeganistão, uma coisa é certa: dessa pseudoguerra contra os demônios da crise mundial gerados pelo próprio capitalismo não sairá fonte de alimento de que o capitalismo possa se amamentar para sobreviver.

Também se ouvem vozes razoáveis, de bombeiros em Nova York a jornalistas e políticos isolados, que pelo menos dizem que uma guerra é absolutamente sem sentido. Mas essa razão ameaça permanecer desamparada e ser arrastada pela onda de irracionalidade se não proceder a uma análise das relações de crise. Para realmente afastar o terror do terreno que lhe é fértil, só há um caminho: a crítica emancipatória ao totalitarismo global da economia.

Original TOTALITÄRE ÖKONOMIE UND PARANOIA DES TERRORS in www.exit-online.org. Publicado em Konkret, Hamburg, 11/2001.

FONTE: Publicado na Folha de S. Paulo de 30.09.2001 com o título O ímpeto suicida do capitalism e tradução de Marcelo Rondinelli. Publicado no jornal Crítica Radical, Fortaleza, 08.10.2001 com o título Economia totalitária e paranóia do terror e tradução de Tito Lívio Cruz Romão

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A PRIVATIZAÇÃO DO MUNDO


Robert Kurz

Deverão a natureza e as necessidades elementares do ser humano ser proibidas por falta de rentabilidade?

É de supor que a natureza já existia antes da economia moderna. Daí que a natureza é em si grátis, sem preço. Isso distingue os objectos naturais sem elaboração humana dos resultados da produção social, que já não representam a natureza "em si", mas a natureza transformada pela actividade humana. Esses "produtos", diferentemente dos objectos naturais puros, nunca foram de livre acesso; desde sempre estavam sujeitos, segundo determinados critérios, a um modo de distribuição socialmente organizado. Na modernidade, é a forma da produção de mercadorias que regula essa distribuição no modo do mercado, segundo os critérios de dinheiro, preço e procura (solvente).

Mas é um problema antigo que a organização da sociedade tenda a obstruir também o livre acesso a um número crescente de recursos pré-humanos da natureza. Essa ocupação traz, das mais diversas formas, o mesmo nome que os produtos da actividade social, a chamada "propriedade". Ou seja, acontece um quiproquó: outrora livres, os objectos naturais não elaborados pelo ser humano são tratados exactamente como se fossem os resultados da forma de organização social, e daí submetidos às mesmas restrições.

A mais antiga ocupação dessa espécie é a da terra. A terra em si não é naturalmente o resultado da actividade produtiva humana. Por isso também teria de ser, em si, de livre acesso. Quando muito, a terra já transformada, lavrada e "cultivada" poderia estar submetida aos mecanismos sociais; e, nesse caso, teria de se tornar propriedade daqueles indivíduos que a cultivaram. Mas, como se sabe, não é exactamente esse o caso. Justamente a terra ainda de todo inculta é usurpada com violência. Já na Bíblia há a disputa entre lavradores e criadores de gado por território (Caim e Abel) e, entre os pastores nómadas, por "pastos mais férteis". A usurpação do solo "virgem" é o pecado original e hereditário da "dominação do homem sobre o homem" (Marx). As aristocracias de todas as altas culturas agrárias repressivas se formaram na origem por essa apropriação violenta da terra, literalmente à clava e dardo.

Contudo a propriedade nas culturas agrárias pré-modernas nem de longe se parecia com a propriedade privada no sentido atual. Isso significava, antes de tudo, que a propriedade não era exclusiva ou total. A terra podia ser utilizada e cultivada também por outros, que em troca pagavam certos tributos (a renda feudal na forma de víveres ou serviços) aos proprietários, originariamente à força. Mas havia ainda possibilidades de uso gratuito. Por exemplo, em muitos lugares, os camponeses tinham a permissão de conduzir seus porcos até as terras incultas do senhor feudal, segar ali forragens crescendo livremente ou recolher outras matérias naturais. Diferentes possibilidades de uso livre nunca deixaram de ser controversas, como o direito à caça e à pesca. Quando os senhores feudais tentavam estabelecer proibições nesse sentido, estas quase nunca eram obedecidas. Assim, o caçador e o pescador ilegais passaram a figurar entre os heróis da cultura popular pré-moderna.

A propriedade privada moderna reforçou monstruosamente a submissão da natureza "livre" à forma da organização social, obstruindo assim o acesso aos recursos naturais com um rigor nunca visto. Essa intensificação da tendência usurpadora tem sua razão no facto de a ocupação ser efectuada agora não mais pelo acto pessoal e imediato de violência, mas pelo imperativo económico moderno, representando uma violência "coisificada" de segunda ordem. A violência armada imediata manifesta-se ainda hoje na ocupação dos recursos naturais, mas ela é já coisificada de forma institucional na própria figura da polícia e do Exército. A violência que sai dos canos das espingardas modernas já não fala por si mesma; ela tornou-se mero beleguim do fim em si mesmo económico. Esse deus secularizado da modernidade, o capital como "valor que se autovaloriza" incessantemente (Marx), porém, não apenas aparece na figura de uma coisificação irracional; ele é ainda muito mais ciumento que todos os outros deuses antes dele. Por outras palavras: a economia moderna é totalitária. Ela levanta uma pretensão total sobre o mundo natural e social. Por isso tudo o que não está submetido e assimilado à sua lógica própria é para ela fundamentalmente uma espinha na garganta. E, como sua lógica consiste única e exclusivamente na valorização permanente do dinheiro, ela tem de odiar tudo o que não assume a forma de um preço monetário. Não deve haver nada mais sob o céu que seja gratuito e exista por natureza.

A propriedade privada moderna representa somente a forma jurídica secundária dessa lógica totalitária. Ela é, por isso, tão totalitária quanto esta: o uso deve ser um uso exclusivo. Isso vale particularmente para os recursos naturais primários da terra. Sob a ditadura da propriedade privada moderna, não é mais tolerado nenhum uso gratuito para a satisfação das necessidades humanas, além das oficiais: os recursos têm de servir à valorização ou ficar em pousio. Dada a forma da propriedade privada, mesmo a parte da terra que o próprio capital não pode de modo nenhum usar deve ser excluída de qualquer outro uso. Essa imposição descabida suscitou repetidas vezes o protesto social. Na época anterior a 1848, uma experiência crucial para o jovem Marx, amiúde enfatizada na sua biografia, foi a discussão em torno da "lei prussiana contra o roubo de lenha", que queria proibir os pobres de recolher gratuitamente a lenha nas florestas. O conflito sobre o uso livre de bens naturais, sobretudo da terra, jamais cessou em toda a história do capitalismo. Mesmo hoje, em muitos países do Terceiro Mundo, há movimentos sociais de "ocupantes da terra" que colocam em questão a ditadura totalitária da propriedade privada moderna sobre o uso do solo.

No desenvolvimento do moderno sistema produtor de mercadorias, o problema primário do acesso a recursos naturais gratuitos foi sobrepujado pelo problema secundário do acesso a recursos "públicos", directamente relacionados ao todo da sociedade: as chamadas infra-estruturas. Com a industrialização capitalista e a inerente aglomeração de massas gigantescas de seres humanos (urbanização), surgiram carências sociais, tornando necessárias medidas que não podiam ser definidas pela lei do mercado, mas somente pela administração social directa. Por um lado, trata-se agora de sectores inteiramente novos, resultantes do processo de industrialização, como o serviço público de saúde, as instituições públicas de ensino (escolas, universidades etc.), as telecomunicações públicas (correio, telefone), o abastecimento de energia e os transportes públicos (caminho de ferro, metropolitano, etc.). Por outro lado, também os recursos naturais antes livremente acessíveis sem nenhuma organização social e os processos vitais humanos que se efectuam por si mesmos tiveram de ser socialmente organizados e colocados sob a administração pública: é o caso do abastecimento público de água potável, da recolha pública de lixo, dos esgotos públicos etc., chegando aos sanitários públicos nas grandes cidades.

Sob as condições do moderno sistema produtor de mercadorias, a "administração das coisas" pública e colectiva não pode assumir senão a forma distorcida de um aparelho burocrático estatal. Pois a forma moderna "Estado" representa somente o reverso, a condição estrutural e a garantia do "privado" capitalista; o Estado não pode, por natureza, assumir a forma de uma "associação livre". A administração pública de coisas permanece assim nacionalmente limitada, burocraticamente repressiva, autoritária e ligada às leis fetichistas da produção de mercadorias. Por isso os serviços públicos assumem a mesma forma do dinheiro que a produção de mercadorias para o mercado. Ainda assim não se trata de preços de mercado, mas somente de tarifas; algumas infra-estruturas até são oferecidas gratuitamente. O Estado financia esses serviços e agregados de coisas somente para uma pequena parte, por meio de tarifas cobradas dos cidadãos; no essencial, eles são subvencionados com a taxação dos rendimentos capitalistas (salários e lucros). Desse modo, a administração pública das coisas permanece ligada ao processo de valorização do capital.

Por um período de mais de cem anos, os sectores do serviço público e da infra-estrutura social foram reconhecidos em toda parte como o necessário suporte, amortecimento e superação de crises do processo do mercado. Nas últimas duas décadas, porém, impôs-se no mundo inteiro uma política que, exactamente às avessas, resulta na privatização de todos os recursos e serviços públicos administrados pelo Estado. De modo algum essa política de privatização é defendida apenas por partidos e governos explicitamente neoliberais; há muito ela prepondera em todos os partidos. Isso indica que não se trata aqui só de ideologia, mas dum problema de crise real.

Seguramente, desempenha um papel nisso o fato de a arrecadação pública de impostos retroceder com rapidez por conta da globalização do capital. Os Estados, as Províncias e as comunas superendividadas em todo o mundo tornaram-se factores de crise económica, ao invés de poder ser activos como factores de superação da crise. Uma vez delapidadas as "pratas" dos sistemas socialmente administrados, as "mãos públicas" acabam assemelhando-se fatalmente às massas de vítimas da velhice indigente, que nas regiões críticas do globo vendem nos mercados de segunda mão a mobília e até a roupa para poderem sobreviver.

Porém o problema reside ainda mais fundo. No âmago, trata-se de uma crise do próprio capital, que, sob as condições da terceira revolução industrial, esbarra nos limites absolutos do processo real de valorização. Embora ele deva expandir-se eternamente, pela sua própria lógica, ele encontra cada vez menos condições para tal, nas suas próprias bases. Daí resulta um duplo acto de desespero, uma fuga para a frente: por um lado, surge uma pressão assustadora para ocupar ainda os últimos recursos gratuitos da natureza, de fazer até mesmo da "natureza interna" do ser humano, de sua alma, de sua sexualidade, de seu sono o terreno directo da valorização do capital e, com isso, da propriedade privada. Por outro, as infra-estruturas públicas administradas pelo Estado devem ser administradas, também no vai ou racha, por sectores do capitalismo privado.

Mas essa privatização total do mundo leva definitivamente a modernidade ad absurdum; a sociedade capitalista torna-se autocanibalista. A base natural da sociedade é destruída com velocidade crescente; a política de diminuição dos custos e a terceirização a todo o preço arruinam a base material das infra-estruturas, o contexto de organização e, com isso, o valor de uso necessário. Há tempos é conhecido o caso desastroso da ferrovia e, de modo geral, dos meios de transporte, outrora públicos: quanto mais privados, tanto mais deteriorados e mais perigosos para a comunidade. O mesmo quadro se constata nas telecomunicações, nos correios etc. Quem hoje precisa, com a mudança de casa, mandar instalar um telefone novo passa por estouro de prazos, confusão de competências entre as instâncias "terceirizadas" e técnicos pseudo-autónomos e praguejantes. O correio alemão, que se transformou numa grande empresa global player ansiosa por sua capitalização na Bolsa, em breve distribuirá cartas na Califórnia ou na China; em troca, o serviço mais simples de entrega mal continua funcionando na Alemanha. Que prodígio actividades inteiras serem ajustadas a salários módicos, as regiões de entrega de poucos carteiros dobradas e triplicadas, e as filiais, extremamente desguarnecidas!

As estações de correio ou de caminho de ferro transformam-se em milhas cintilantes de lojas estranhas à sua alçada, enquanto o serviço próprio sofre. Quanto mais estilizados os escritórios, tanto mais miserável o serviço. Apesar de todas as promessas, a privatização significa cedo ou tarde não só a piora mas também o aumento drástico de preços. Porque és pobre, tens de morrer mais cedo: com a privatização crescente dos serviços de saúde, essa velha sabedoria popular recebe novas honras mesmo nos países industriais mais ricos. A política de privatização não dá tréguas nem sequer às necessidades humanas mais elementares. Na Alemanha, as toilletes de estações de comboio passaram a ser recentemente controladas por uma empresa transnacional de nome "McClean", que cobra pela utilização de um mictório tanto como por uma hora de estacionamento no centro da cidade. Portanto agora já se diz: porque és pobre, tens de mijar nas calças ou aliviar-te ilegalmente!

A privatização do abastecimento de água na cidade boliviana de Cochabamba que, por determinação do Banco Mundial, foi vendida a uma "empresa de águas" norte-americana, mostra o que ainda nos espera. Em poucas semanas, os preços foram elevados a tal ponto que muitas famílias tiveram de pagar até um terço dos seus rendimentos pela água diária. Juntar água da chuva para beber foi declarado ilegal e ao protesto respondeu-se com o envio de tropas. Em breve também o sol não brilhará de graça. E quando virá a privatização do ar que se respira? O resultado é previsível: nada funcionará mais, e ninguém poderá pagar. O capitalismo terá então de fechar, por "falta de rentabilidade", tanto a natureza como a sociedade humana e abrir outras.

Original Die Privatisierung der Welt em www.exit-online.org. Publicado na Folha de S. Paulo, 14.07.2002, titulado Modernidade Autodevoradora, com tradução de Luiz Repa


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QUEM É ROBERT KURZ?

Filósofo, sociólogo e ensaísta alemão nascido em 1948. Robert Kurz é um filósofo que fundamentalmente defende nas suas teses o fim do emprego. Kurz diz que "não restará ao homem senão inverter o resultado do capitalismo e libertar-se do trabalho" e que a emancipação social não poderá fundamentar-se em tal conceito.

Kurz tem uma visão considerada por muitos de pessimista e até mesmo de catastrofista, apesar de ter uma argumentação lógica que encontra grande repercussão na Europa. Mas nem tudo é sombrio no discurso de Kurz, já que ele vislumbra um modo de trabalho menos opressivo, que contenha lazer e no qual as pessoas não sejam reduzidas às suas funções.

Parte de uma corrente de esquerda marxista tradicional para desenvolver uma nova abordagem na análise dos problemas contemporâneos. No centro das preocupações do seu pensamento encontra-se uma questão simples: "Porque é que, depois que inventaram as máquinas, as pessoas têm que trabalhar mais do que antes da existência delas?". Com esta questão, Kurz coloca problemáticas profundas da relação do homem com o trabalho, as quais nem o comunismo nem o capitalismo conseguiram responder de uma forma positiva.

"Nadando" contra a corrente, Kurz diz que a elevada concorrência que existe tem tendência a gerar uma deterioração nas relações humanas e que a revolução da informática representa um perigo para a sociedade por estar aliada a um sistema de produção que tende a criar cada vez mais desemprego.

Para Kurz, a separação de funções é um retrato da divisão do trabalho na sociedade capitalista e propõe que o tempo economizado pelo aumento da produtividade se transforme em qualidade de vida.

Aponta uma contradição entre uma suposta ontologia do trabalho inerente às formulações do movimento operário e o próprio "trabalho" como categoria social constituída pelo capital e subsumida à forma de mercadoria. A luta de classes poderia, assim, atingir no máximo a "emancipação capitalista dos trabalhadores", garantindo o reconhecimento dos seus direitos alusivos a cidadania, ao valor da força de trabalho e à "impessoalidade" como "máscaras de dinheiro".

A diminuição do trabalho abstracto, afirmada por Kurz, interpela toda a humanidade: a abolição do capital dentro do próprio capital é também o progressivo fim do sujeito histórico e da sua superação.

Defende os direitos de igualdade da mulher, considerando que a imagem patriarcal é a que persiste. Refere que este domínio masculino é uma questão social e não biológica, resultando de processos históricos. A mulher é responsável pela "dedicação afectiva e o homem é a figura exterior que se movimenta na ciência, na cultura e na política. Os capitalistas e empresários, assim como os políticos, ainda são sobretudo homens e a mulher que tenha uma profissão intelectual ou politicamente activa não se consegue desenvencilhar das marcas sociais que lhe são imputadas pela cultura dominante masculina, e continua, em princípio, como responsável pela casa e pelos filhos nunca sendo levada a sério na economia ou na política. A percentagem das mulheres que consegue manter estas duas "carreiras" ao mesmo tempo é ínfima. Só uma reduzida minoria de "mulheres de carreira" pode dar-se ao luxo de uma tal ilusão, delegando o fardo da administração do lar, dos cuidados com os filhos, etc., a empregadas muitas vezes imigrantes, negras, e desprivilegiadas, que, por sua vez, deixam de ter tempo para os seus próprios filhos. A maioria das mulheres está demasiadamente sobrecarregada com a tarefa de responder, ao mesmo tempo, pelo dinheiro, pelas actividades domésticas, apesar destes aspectos estarem aos poucos a se modificar. Na pós-modernidade, o patriarcado não deixa de existir e acaba-se por se criar um mundo que transforma crianças em assassinos e psicopatas.

Organizador da revista Krisis , antiga Marxistische Kritik , e seu co-editor, é também autor entre outros de livros de O Colapso da Modernização - da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial , A Volta do Potemkin (Paz e Terra) e Os Últimos Combates . Lançou na Alemanha O Livro Negro do Capitalismo .

Escreve mensalmente na coluna de autor do caderno Mais , publicado pela Folha de São Paulo , no Brasil.

Um dos livros que suscitou muita polémica depois da queda dos regimes do leste europeu foi O Colapso da Modernização . Neste livro, Kurz pensa o "socialismo de caverna" como tributário da mesma lógica de valorização do capital referente aos países ocidentais.

Assim, a crise do Leste fez parte da crise mundial do capitalismo moderno. O que permite a Kurz proceder a uma metacrítica do sistema mundial produtor de mercadorias é a definição de fases monetaristas e estatistas, num movimento pendular ao longo de toda a história do sistema capitalista.