domingo, 25 de abril de 2010

EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

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A ofensiva neoliberal na América Latina no campo da educação

Moacir Gadotti

Só posso falar da globalização a partir de um lugar, de um ponto de vista que é sempre a vista de um ponto. Falo, portanto, a partir de onde vivo: o Brasil, a América Latina. Se examinarmos as estratégias do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio – hoje, os principais promotores(6) da globalização capitalista e do modelo neoliberal no setor da educação (Gentili, 1997) – na América Latina, saltam aos olhos algumas constatações sobre a concepção educacional defendida por esses organismos.

1) A globalização capitalista neoliberal (globalismo) trabalha com a noção de “Governo” (aparatos administrativos) separada da noção de “Estado”. O Estado, além do governo, tem uma dimensão simbólica que inclui a noção de cidadania. O Estado não apenas financia a educação, mas também constrói valores, sentido (direitos, cidadania
...). Para o “globalismo”, o cidadão é reconhecido apenas como cliente, como consumidor, que tem uma “liberdade de escolha” entre diferentes produtos. O cidadão precisa apenas ser bem informado para “escolher”. Por isso, ele precisa saber do ranking das principais escolas, as “melhores”. Esse cidadão não precisa ser emancipado; precisa apenas “saber escolher” (Friedman, 1982).

2) O Banco Mundial sustenta que os governos devem ser eqüitativos nos gastos, privilegiando os mais pobres e delegando a função de educador aos pais. Os ricos devem pagar pelo ensino. Filantropia para os pobres e Mercado para os ricos. De um lado, os tutelados, os necessitados e, de outro, os globalizados. Para as políticas neoliberais, como sustentam Rosa Maria Torres e José Luís Coraggio (1997), o Estado deve abandonar a idéia de igualdade (socialização) para assumir a eqüidade (atenção para com as diferenças). Considera-se a educação como um serviço e não como um direito. Esse argumento é utilizado principalmente quando se trata do Ensino Superior. Segundo os experts do Banco Mundial, a universidade pública foi criada para os pobres, mas eles não chegam a ela, por isso a gratuidade “indiscriminada” seria injusta.

3) Os princípios que orientam as reformas neoliberais na América Latina são essencialmente instrucionistas, isto é, estão centrados no ensino e não na aprendizagem. Por isso estão na contramão das teorias de currículo mais atuais. Defende-se o aumento de tempo para instrução e não a qualidade da formação escolar. O discurso do Banco Mundial, por exemplo, sobre a qualidade do ensino parte da idéia de que a questão da quantidade no ensino fundamental já foi resolvida. Agora o problema seria a qualidade e o gerenciamento. Só que não oferece indicadores de qualidade. E mais: os professores estão excluídos de toda discussão do tema da qualidade. Eles não têm voz. O que se busca é uma estandartização da qualidade, da avaliação, da aprendizagem e a criação de “parâmetros” para tudo, como se tudo pudesse ser mensurável na educação. Trata-se de uma concepção “fordista” da qualidade, numa época (era da informação) em que já estamos indo além até do “toyotismo”. Ensina-se muito e aprende-se pouco. Aprender, nessa visão instrucionista, é “aceder”, ter acesso a computadores, a uma informação. Aprender é identificar informações e saber utilizá-las em algum momento; esse é o conceito neoliberal de qualidade. Ensinar se reduziria a aplicar uma receita, a saber manejar um repertório de técnicas.

4) Trata-se de uma política que apela para o indivíduo docente, e não para o coletivo de docentes (sindicatos) e nem mesmo para o colegiado da escola. Aliás, os docentes são vistos sempre como o problema da educação. Debita-se ao docente o problema da “baixa qualidade” da educação. A questão maior seria o alto nível de “politização” dos professores. A proposta neoliberal é de uma desprofissionalização da docência, buscando-se alternativas na “terceirização”, contratando-se docentes através de concorrência pública, como trabalho temporário, docentes não formados para “formá-los” em serviço, rapidamente. Para a concepção neoliberal, os docentes não precisam ter conhecimento científico. Seu saber é inútil. Por isso, não precisam ser consultados. Eles só precisam receber receitas,(7) programas instrucionais. No limite, eles podem ser substituídos por um computador bem programado. Por isso encontramos uma proliferação em larga escala de classes superlotadas e, cada vez mais, a promoção do “ensino a distância a baixo custo”.

5) Nessa “educação bancária” (Paulo Freire), o docente é apenas um “facilitador”, um “aplicador” de textos: “Hoje vamos estudar da página 13 à página 18”. Nada mais. Por isso os textos didáticos devem ser “explícitos”, pensados e revistos de acordo com certos “parâmetros nacionais”(8) do Banco. O docente “passa” de uma página para outra e avança conforme a aplicação das páginas do texto. Qualquer pessoa pode “passar” de uma página para outra. Não precisa tanto tempo para se formar. Na verdade, nem precisa ser “professor”. Precisa ser apenas um técnico. Como a Corporação e seus “gerentes”(9) já sabem o que é conhecimento, qual é o conhecimento “útil”, deve-se dizer ao professor o que ele pode “repassar” ao aluno e como ele deve “ensinar”. Neste caso até um computador bem programado poderia substituí-lo. O professor não seria mais necessário. Precisaríamos apenas de bons textos didáticos e de computadores. A educação reduz-se ao acesso à informação, sem a interferência do professor.(10)
6) Essa seria a propalada educação “para todos”. Já para as elites ela seria diferente. Para as elites haveria necessidade de professores, para formá-los como “governantes”. Para as classes populares que freqüentam a escola pública, que precisam apenas “ser informadas”, os professores seriam cada vez menos necessários. A concepção neoliberal é contra a autonomia das escolas públicas, contra a “Escola Cidadã” freiriana, por exemplo, mas não contra a autonomia das escolas privadas. Porque o professor autônomo da escola pública forma para valores cívicos, forma o “povo soberano” (Tamarit, 1996). Não é apenas um cumpridor de ordens. Para a concepção neoliberal, o professor da escola pública deve ser apenas um “repassador” de informações.

7) Como deve ser o sistema de ensino? Na concepção neoliberal, o sistema de ensino deve propor pacotes de ensino para serem “aplicados” para as pessoas aprenderem a resolver seus problemas. É para isso que servem as reformas propostas de “cima para baixo” e de “dentro para fora”, já que não se trabalha com a participação da Sociedade Civil. E como a referência da educação neoliberal é o Mercado, não a cidadania, os princípios que orientam as reformas neoliberais na América Latina estão muito mais voltados para a compra de equipamentos. Não são projetos educativos em seu sentido estrito.

Estou carregando um pouco nas tintas nessa análise, sem fazer as necessárias nuanças para saber o que devemos combater, não nos iludir, e para construir as alternativas de outra educação, com outra lógica que não a lógica do mercado. Como se deseja tudo privatizar, as reformas visam diminuir os gastos com educação, para que a “sociedade” (Mercado) assuma esse serviço. O mesmo aconteceria com a cultura que, agora “mercantilizada” e “digitalizada”, passaria para o controle do mercado. A tendência à mercantilização vai muito além do tema da educação e da cultura. No limite, essa concepção nos levaria a uma nova “governação”. As empresas passariam não só a comprar e vender conhecimento em suas indústrias, não só criariam suas próprias universidades (McDonalds, IBM, Motorola...), como também buscariam no mercado os “melhores” profissionais para gerenciar setores importantes do Estado ou até mesmo o próprio Estado (não haveria mais necessidade de consulta popular; ela seria feita por meio de testes e concorrências “públicas”). Teríamos apenas governantes profissionais.

A ofensiva neoliberal na América Latina no campo da educação iniciou-se com a ditadura Pinochet, no Chile, nos anos 70, mas se aprofundou nos últimos vinte anos, provocando um profundo processo de desestruturação e reestruturação educativa no campo político, legal, curricular e pedagógico. O modelo tem sido imposto em todos os países da América Latina mediante as políticas de ajuste, promovidas principalmente pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, mas os impactos têm sido diferentes em função dos diferentes contextos e das diferentes formas de resistência. As matrizes das propostas de reforma educativa na América Latina provêm desses Bancos. O objetivo da ofensiva neoliberal é incorporar o continente às exigências da globalização capitalista, que, em síntese, se traduz pela transformação da educação numa mercadoria. Mercantilização do conhecimento e incorporação dos mecanismos de mercado. Desresponsabilização do Estado diante do dever de educar.

O argumento básico do modelo neoliberal está na justificativa de que é o único modelo eficaz diante do fracasso das economias socialistas e de Estado de Bem-Estar. Isso impõe a necessidade de adequar a educação às exigências da “sociedade de mercado” (argumentam que o sistema educativo está em crise porque não está adequado à globalização capitalista, que considera a escola como uma empresa que precisa se submeter à lógica da rentabilidade e da eficiência da empresa), principalmente os conteúdos, a avaliação, a gestão da educação, pois eles são atrasados, não respondendo às novas exigências do mercado.

As principais propostas do modelo neoliberal são:

1) conteúdos mínimos e socialmente necessários, verificados através de exames nacionais;
2) redução dos benefícios dos trabalhadores da educação e promoção por sistema de prêmios;(11) 3) centralização curricular e pedagógica (exemplo: a avaliação nacional);
4) descentralização das responsabilidades e municipalização do ensino fundamental; e
5) padrões de gestão mercantis da escola.

Contra essa ofensiva neoliberal na América Latina no campo da educação, o Fórum Mundial de Educação aprovou, em sua terceira edição, realizada em Porto Alegre no final de julho de 2004, uma “Plataforma Mundial de Lutas”, em defesa do direito à educação pública e contra a mercantilização da educação. (12)
NOTAS:

6 Apesar de ambos estarem caminhando na mesma direção, não significa que não existam diferenças entre eles. Pode-se dizer que apolítica de mercantilização da educação da OMC é muito mais explícita do que a do Banco Mundial. Uma diferença fundamental está na questão do papel do Estado: enquanto o Banco Mundial ainda defende os organismos intergovernamentais como a Unesco e o Unicef, a filosofia da OMC caminha na direção da extinção desses organismos e a substituição por representantes das próprias corporações, mediante um “acordo entre acionistas”. Contudo, seria injusto responsabilizar esses organismos por todos os nossos problemas educacionais. Eles podem ter influência, sem dúvida, mas não nos isentam de responsabilidades.

7 Por isso o Banco Mundial prefere ser chamado de “BanKnowledge”, um banco que oferece “soluções” para todos os que têm problemas em todos os campos. Para cada problema apresentado pelos ministros da Educação o Banco oferece um menu de soluções, independentemente dos contextos. O Banco tem um “catálogo” de cursos, e os “tomadores de decisões” folheiam esse catálogo e vão escolhendo seu produto de acordo com as necessidades: aspirinas para as febres educativas, receitas para os “males da educação”, etc. O Banco Mundial está hoje menos interessado em emprestar dinheiro do que em vender idéias (pacotes) e políticas.

8 Hoje as corporações multinacionais já trabalham com parâmetros “universais”, globais. As nações já não têm mais autonomia para definir os seus parâmetros.

9 Em muitos estabelecimentos de ensino já não se trabalha mais com “diretores” de escola, mas com “gerentes” que não dispõem de formação educacional.
10 Muitas vezes eu me pergunto porque a palavra “pedagogia” das línguas neolatinas é traduzida em inglês por “education” ou “teaching”, com sentido completamente diferente. A pedagogia não existe como área de trabalho no campo da educação neoliberal. Ela aparece como “learning”.

11 Pode-se dizer que a expansão do ensino foi custeada, indiretamente, pelos trabalhadores da educação, por meio da diminuição do poder aquisitivo de seus salários. A média do salário do professor é de 200 dólares na região. Para compensar essa perda, ele deve trabalhar em mais de um lugar, com enorme desgaste físico e mental, dificultando muito a sua formação continuada.

Moacir Gadotti: Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra; professor titular da Universidade de São Paulo (USP); diretor do Instituto Paulo Freire e autor, entre outras obras, de: História das idéias pedagógicas (Ática, 1993), Pedagogia da práxis (Cortez, 1994), Perspectivas atuais da educação (Artes Médicas, 2000), Pedagogia da terra (Peirópolis, 2001), Um legado de esperança (Cortez, 2001) e Os mestres de Rosseau (Cortez, 2004).

(Fonte: Moacir Gadotti .O Mercosul Educacional e os Desafios do Século 21 – páginas 18 a 20. Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007; disponível em http://www.publicacoes.inep.gov.br/detalhes.asp?pub=4152.
Acesso em 24 abril de 2010)

12 O Fórum Mundial de Educação (FME) afirmou o direito universal a uma educação emancipatória, o pleno e inalienável direito à educação pública, gratuita, de qualidade social para todos(as), exigindo a garantia de acesso e permanência, o direito de aprender na escola, a democratização dos conhecimentos e saberes em benefício de toda a Humanidade, rechaçando qualquer forma de privatização e mercantilização da educação, da ciência e da tecnologia e condenando a apropriação ilegítima dos saberes populares e dos conhecimentos das comunidades nativas. Diante disso, o FME propôs-se articular um movimento mundial em defesa e promoção da educação pública e gratuita em todos os níveis e modalidades, rechaçando qualquer acordo nacional e internacional que promova a mercantilização da educação, conhecimento, ciência e tecnologia, particularmente o relativo ao comércio e serviços da OMC, recusando programas de ajuste estrutural que pressionam os governos a desmantelar os serviços públicos. Propôs-se, ainda, a apresentar aos governos nacionais uma agenda que priorize programas para a eliminação do analfabetismo, pela inclusão educacional da população mais excluída e contra a exploração do trabalho infantil, exigindo deles a democratização da gestão das instituições públicas e das políticas sociais, em especial as educacionais, relacionando-as a políticas intersetoriais que as complementam, fortalecendo as comunidades educativas e promovendo o controle social do financiamento da educação.

Educação, globalização e neoliberalismo

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O Analfabeto Político

O pior analfabeto
É o analfabeto político,
Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguel, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas.

O analfabeto político
é tão burro que se orgulha
e estufa o peito dizendo
que odeia a política.

Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política
nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos,
que é o político vigarista,
pilantra, corrupto e o lacaio
das empresas nacionais e multinacionais.

Bertold Brecht, escritor e teatrólogo alemão (1898/1956).


Ignorar o aspecto político da vida é vivê-la pela metade. Para entendermos o que se passa com a educação se faz necessário o conhecimento dos bastidores das políticas educacionais. Educação e economia estão intimamente ligadas, a adoção das diretrizes neoliberais para a educação, adotadas na gestão de Fernando Henrique Cardoso e do então ministro da educação Paulo Ramos, estão presentes no nosso cotidiano.

O educador, para ser um profissional completo, além de dominar o conhecimento técnico da sua disciplina e os conhecimentos pedagógicos e legislativos precisa também ter conhecimento das políticas educacionais e de seus bastidores.

O S.O.S. Educação Pública, em breve terá uma seção com artigos, estudos e notícias sobre políticas educacionais.

Algumas questões sobre a Prova do ENEM

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Recomendo uma visita ao blog "A Educação em Notícia" do Professor Fernando Beltrão e a leitura de uma carta enviada para a professora Ana Cabral, pro-reitora da UFPE. O texto apresenta uma análise crítica da prova e levanta questões sobre as contradições do ENEM.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O JEITINHO BRASILEIRO PARA DRIBLAR A FALTA DE RECURSOS PODE SER FATAL.

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A mania nacional de remediar, de tentar trabalhar sem ter recursos adequados é uma realidade no setor público, na saúde, na educação, na segurança e até na justiça. É o “jeitinho brasileiro”, o curinga para driblar a falta de estrutura existente no serviço público.

Sem condições ideais de trabalho, os profissionais improvisam na tentativa de fazer o melhor possível. A tragédia provocada pela soltura do pedreiro Adimar José da Silva autorizada pelo juiz Luís Carlos Miranda é um exemplo dessa prática. Em entrevistas à Associação dos Magistrados do Maranhão – AMMA - o magistrado alegou que não teria condições de solicitar o reexame do preso por falta de estrutura do sistema: “Temos nove psicólogos e dois psiquiatras para cuidar de uma massa de 8,5 mil presos”.O mesmo problema também foi apresentado em entrevista ao Fantástico, em entrevista no programa exibido no 18 de abril.

O grande erro deste juiz foi tentar fazer o seu trabalho da melhor forma possível, mesmo sem ter condições. Entendo esse funcionário público, que agora responde sozinho por um erro ao qual foi induzido pela precariedade do sistema. O verdadeiro culpado pela soltura do maníaco, pela morte dos jovens e o luto das famílias foi o próprio Estado. Não é da competência do juiz, contratar o pessoal necessário para preencher os quadros administrativos, construir novas unidades prisionais para acabar com a superlotação do sistema carcerário, atualizar o código penal brasileiro como também não é ele o responsável pela falta de um sistema único de dados sobre os criminosos do país.

Neste episódio, que infelizmente chegou à mídia em função das seis mortes ocorridas, o grande culpado é o sistema. Inúmeras são as falhas do sistema, que permitiram essa tragédia.
É lamentável ver como a mídia e as pessoas, insistem em ignorar os problemas estruturais do serviço público, a responsabilidade das tragédias é sempre privatizada, isto é, passa a ser do indivíduo, que naquele momento trabalhava sem condições.

Na rede pública de saúde, nas escolas públicas, na segurança pública e também na justiça os profissionais trabalham sem condições, o que mantém o sistema funcionando é a boa vontade, ou melhor, a ingenuidade de apelar para o "jeitinho brasileiro".

Espera-se que a humanidade aprenda com os seus erros, espero que essa tragédia sirva de lição para todos os funcionários públicos que se arriscam diariamente dando o jeitinho brasileiro para contornar as falhas do sistema. Se não houver condições não façam, denunciem a precariedade do sistema, enviem memorandos para os seus superiores, escrevam para os jornais, façam qualquer coisa para que a população tome conhecimento da situação. Quando "o jeitinho brasileiro" funciona, os louros são do sistema, mas caso saia algo errado, o único culpado será o funcionário (a).

domingo, 18 de abril de 2010

FORMAÇÃO CONTINUADA

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Milagre cotidiano: a (auto) formação continuada dos docentes

A boa qualidade do desempenho profissional é fruto do aperfeiçoamento constante, pode-se medir a importância de uma atividade pela atenção que é dada à capacitação e a atualização dos conhecimentos dos trabalhadores nela envolvidos. Durante anos trabalhei no setor de turismo e todos os anos, fazia pelo menos dois cursos de aperfeiçoamento custeados pelas empresas em que trabalhava. Essa prática é rotineira, mais um exemplo para ilustrar essa tendência: meu irmão atua na área de mecânica aeronáutica – aviões e helicópteros – anualmente ele faz em media quatro cursos, todos integralmente pagos pela empresa. Detalhe importante, nos dois exemplos citados, não há legislação determinando esse aperfeiçoamento, o mesmo se dá em função da qualidade e produtividade almejada pelas empresas.

Atuando no magistério na rede pública e na rede privada, percebo o total descaso para com a educação nos dois setores. Solenemente a Constituição é ignorada, quando se trata da educação, pois a formação continuada dos docentes encontra-se determinada pela Constituição de 1988 e também pela LDB.

É inconcebível para o profissional da área, exercer as suas atividades sem o contínuo aperfeiçoamento, somos obrigados a estudar constantemente, entretanto esse profissional não recebe ajuda de custo, arcado sozinho com os custos do seu aperfeiçoamento.

O retorno do investimento que fazemos na nossa formação continuada é praticamente nulo, vejam abaixo quanto vale um mestrado e um doutorado na rede pública do Estado do Rio de Janeiro:

Professores da rede estadual que têm mestrado ou doutorado já podem requerer o Adicional de Qualificação. Docentes de 40 horas que fizeram mestrado terão direito a receber R$ 420. Professores que cumprem a mesma carga horária e que cursaram doutorado vão receber R$ 840. Já os profissionais que fizeram mestrado e trabalham 16, 22 ou 25 horas, terão abono de R$ 210. Para aqueles que cumprem estes horários e têm doutorado, o benefício será de R$ 420.
(http://www.conexaoprofessor.rj.gov.br/educacao-noticia-detalhe.asp?EditeCodigoDaPagina=3338)

Na rede privada também não é valorizado, não vou me alongar nesse ponto, pois este espaço é para tratar da educação pública. Atualmente as redes de ensino privado também não estão pagando o que deveriam para os docentes com mestrado e doutorado, por uma questão de custos, a maior parte do corpo docente no máximo tem uma pós-graduação, essas instituições mantém em seus quadros o número mínimo de mestres e doutores exigidos pelo MEC, e basta entrar no site do SINPRO, que vamos ver como anda as coisas para os docentes destas instituições.

Portanto exigir melhores condições de trabalho no nosso caso é um ato de cidadania, pois o que queremos é respeitar e cumprir o que manda a Constituição.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Reprodução de artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico - Rea

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Educar contra a barbárie
Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP), do Conselho Editorial da Revista Margem Esquerda e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo


“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”.

“(...) se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito". (Theodor W. ADORNO, 1995: 119 e 134)


Você que nasceu nos anos 60 sabe onde fica Auschwitz? Ainda que não saiba sua localização, provavelmente saberá o que foi Auschwitz. Mas, e a geração dos anos 80: será que aprendeu o real significado de Auschwitz? Será que nossa geração soube cultivar nas mentes e corações destes jovens a indignação diante do que aconteceu em Auschwitz e outros campos de concentração nazistas?

Nossa responsabilidade como educadores é enorme. Quanto maior a nossa ignorância, maior o perigo da negação absoluta da civilização. Como afirma Adorno: “Fala-se de uma ameaça de regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora”. (Id.: 119)

Olhemos ao nosso redor. A realidade que nos cerca expressa a barbárie e está prenhe de fatores que apontam para o risco da regressão. O mundo globalizado impele as pessoas em direção ao xenofobismo, à intolerância diante do outro, à idéia de que há uma inevitabilidade histórica, ao consumismo e ao individualismo desenfreado. Naturalizam-se as mazelas e misérias da condição humana, em nome de um determinismo amparado num viés tecnicista e nas necessidades da concorrência internacional, isto é, da predominância do mercado.

As possibilidades históricas são suprimidas pelo discurso único. Prevalece a mesmice entediante e auto-anestesiante. Certos espaços onde deveria frutificar a reflexão crítica mais parecem “cemitérios de vivos”. A crítica deu lugar ao comodismo e ao servilismo. Os poderosos de plantão decretaram que não existe alternativa e muitos intelectuais, salvo honrosas exceções, acataram. Os problemas sociais que afligem enormes parcelas da humanidade, excluídas da mais elementar cidadania, parecem inevitáveis ou um castigo dos céus. O Capital riscou do mapa contingentes populacionais cujo maior pecado é simplesmente não ter poder aquisitivo para consumir. Estas pessoas, no Brasil, na África, na Índia e mesmo nos países desenvolvidos, não contam como humanos: são descartáveis.

A desnutrição cresce num mundo onde a tecnologia já torna possível a superação da fome. Contrariamente aos ideólogos malthusianos, nosso problema não é o crescimento populacional. As guerras declaradas, as guerras civis não-declaradas nos centros urbanos e as políticas governamentais funcionam como a foice da morte a ceifar a vida de milhares de crianças e jovens precocemente enviados para o além. O problema está na concentração da riqueza – aqui e lá fora. As próprias instituições internacionais, como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), reconhecem que a globalização concentrou mais renda, seja na relação comercial entre os países, seja no âmbito interno destes.

A condição humana continua a ser aviltada em situações que antes horrorizavam os bem-pensantes membros da classe média intelectualizada. Basta ver as notícias sobre as torturas nas cadeias deste nosso imenso país. As vítimas em geral são negros e pobres. E o trabalho infantil, a prostituição de crianças e o trabalho escravo, volta e meia denunciados na grande imprensa?

Enquanto isso, nós, educadores e intelectuais acadêmicos, nos voltamos para o nosso mundinho, para o nosso umbigo; para as veleidades da ambição acadêmica. Vaidosos, ostentamos nossos títulos acadêmicos como prova da nossa pretensa superioridade intelectual. Títulos que nada provam. Mesquinhos, alimentamos nosso ego com o quinhão do poder burocrático. Em nossa arrogância, fetichizamos a técnica e o conhecimento sem atentarmos para o fato de que seu domínio pelo nazismo significou a supressão da humanidade. Como compreender que foram precisamente os cientistas, isto é, pessoas tituladas e diplomadas, que projetaram o sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com rapidez e eficiência?

Donos da verdade, damos ouvidos às conversas de corredores; formalizamos a informalidade das relações em memorandos, protocolandos etc. Transformamos o trivial e o ridículo em batalhas políticas – ainda que coloquemos em risco a sobrevivência econômica dos nossos colegas de trabalho. Substituímos a mais elementar solidariedade – ou mesmo o tão famigerado corporativismo, mas que tem lá seus aspectos positivos, pois pelo menos expressa um mínimo de solidariedade – pela autofagia e pelo individualismo exacerbado.

Em nome da eficiência quantificamos tudo. Dessa forma, repetimos outro procedimento presente em Auschwitz: a coisificação das relações humanas. A partir do momento que não nos indignamos diante da realidade social, que aceitamos como naturais determinados fenômenos sociais, acabamos por admitir que parcelas de seres humanos são descartáveis. Ao perdermos a noção do humano, o que Adorno denomina de consciência coisificada, nos tornamos coisa e tratamos os outros como coisas.

Longe de pura abstração filosófica, este fenômeno está presente em nosso cotidiano nas questões que nos parecem mais banais: a delinqüência juvenil (lembremos de como os adolescentes atearam fogo no índio Pataxó); os assassinatos motivados por roubos de pequenas quantias ou mesmo por uma discussão com o motorista de ônibus; o domínio do tráfico e quadrilhas semelhantes (onde o fator humano só conta como consumidor de drogas e meio de enriquecimento). Numa realidade onde a vida humana vale menos do que um objeto material qualquer, a tendência é a crescente banalização do mal.

Perdemos os limites. Quando um filho da abastada classe média trata outro ser humano como coisa descartável e ficamos indiferentes alimentamos a serpente do autoritarismo. É preciso, portanto, impor limites e mostrar que o intolerável não pode ser tolerado. Em nome da liberdade de expressão, grupos racistas e neonazistas fazem propaganda pela Internet. Não podemos tolerá-los! Não podemos agir como se isto fosse insignificante. O argumento preconceituoso contra os negros, os nordestinos, os homossexuais, etc., nos diz respeito.

Como educadores, temos responsabilidade social diante de tudo isso. Então, ao invés de nos perdemos em discussões intermináveis e estéreis; de nos afogarmos em nossa própria vaidade; de gastarmos nosso precioso tempo na mesquinhez do emaranhado burocrático e na luta pelo poder de controlar os meios de prejudicar o outro; de nos desgastarmos em picuinhas e academicismos; eduquemos no sentido da auto-reflexão crítica e nos dediquemos à tarefa de esclarecer, para que se produza um clima intelectual, cultural e social que não permita a repetição de Auschwitz. O primeiro passo é repensarmos nossas práticas como educadores.e nos indignarmos com tudo que nos lembre Auschwitz ...


Referência Bibliográfica:
ADORNO, Theodor W. (1995) Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: paz e Terra

Os artigos publicados não expressam necessariamente a opinião da revista e são de responsabilidade exclusiva dos autores.
Fonte:
http://www.espacoacademico.com.br/039/39pol.htm