Lendo no blog Conversa Afiada, o post "Escândalo: está em marcha o “SP (só) para paulistas” tomei conhecimento da existência dos movimentos “São Paulo para os paulistas” organizado por Fabiana Pereira e do "Movimento Juventude Paulistana", articulado por Willian Godoy Navarro com Fabiana e outros 600 paulistas. O autores desses movimentos são jovens, ela tem 35 anos e ele 22.
Fabiana e Willian, em entrevistas, alegam que um dos objetivos dos seus movimentos é a preservação da “cultura paulista”, segundo eles, ameaçada de morte pela “cultura nordestina”. Em momento algum eles percebem que a “cultura paulistana” há muito tempo foi desfigurada pela influência externa difundida pela globalização. Ao contrário do nordeste, São Paulo viveu e vive um processo acelerado de aculturação, tendo aderido de corpo e alma à cultura pós-moderna globalizada. A mentalidade paulistana da classe média paulista é semelhante a mentalidade dos cidadãos de Nova York, portanto o choque com a cultura nordestina, que se manteve preservada, pode ser interpretada como um embate da cultura brasileira X a cultura globalizada. Não se trata de preservar as raízes, e sim extirpar de São Paulo qualquer vestígio da cultura nativa. Um bom exemplo desse processo de aculturação que ocorre em São Paulo é a transformação dos peões em cowboys e a indústria milionária dos rodeios e da música caipira, autenticamente nacional adaptada ao country-norte americano. É paradoxal se sentirem afrontados pelas manifestações da cultura nordestina enquanto desfilam fantasiados de cowboys, mesquinhamente reclamam dos centavos destinados ao bolsa família e não se incomodam com as privatizações. Entopem a língua de palavras estrangeiras, mas se sentem invadidos com as expressões regionais nordestinas. Esconjuram o forró enquanto se esforçam para dominar a coreografia dos caipiras norte-americanos. É lamentável a vocação que alguns segmentos de nossa sociedade têm para o deslumbramento com tudo que é estrangeiro e o desprezo por tudo que é nacional.
O curioso é que esses defensores da cultura paulistana, nas entrevistas, tentam justificar o seu movimento dizendo que saem da escola sem saber nada sobre os bandeirantes. Impossível, pois a expansão territorial é conteúdo de vestibulares e do ENEM, e todo estudante que não matou aula, sabe que os gloriosos bandeirantes viviam do comércio de escravos indígenas. Reclamam que São Paulo sustenta o Brasil, mas esquecem de mencionar o Convênio de Taubaté, que durante toda a República Velha, socializou os prejuízos dos barões do café, retirando verba dos outros estados e transferindo para o Estado de São Paulo; omitem o fato que a industrialização de São Paulo recebeu subsídios do Estado, pois o modelo de industrialização adotado por Vargas foi o prussiano, em vista da debilidade da burguesia nacional. Portanto as justificativas desses ativistas não se sustentam, ou eles estão distorcendo a história para justificar as suas sandices ou então, são intelectualmente incapazes, o que não dá pra acreditar tendo eles o nível superior.
Enquanto lia as entrevistas dos responsáveis pelos movimentos, lembrei-me do artigo "A Juventude Dourada da Globalização" escrito pelo sociólogo alemão Robert Kurz, em 2003, que pode nos auxiliar a entender um pouco mais sobre esse fenômeno, como também sobre a xenofobia neles presentes. Para acessar o texto completo consulte a página Robert Kurz, inserida neste blog. Segue abaixo trechos deste artigo.
“O Ocidente e os centros asiáticos vivenciam agora o mesmo processo de dissolução social e de barbárie que já se propagara pelas regiões do Terceiro Mundo, fracassadas com a "modernização atrasada". A ambivalência das interpretações desapareceu; o assunto é decidido negativamente. É claro que não se trata meramente de um processo objetivo. A consciência social precisa elaborar de algum modo a crise que irrompe. Isso concerne sobretudo àquelas novas camadas sociais que, segundo Dahrendorf, haviam começado a "dar o tom" em termos simbólicos-culturais e cujos campos agora são soterrados. Com que mentalidade e com que ideologia nós temos de lidar nesse contexto? Dahrendorf ilustra a "classe global" com aquelas conhecidas figuras que "passam muito tempo nos saguões dos aeroportos internacionais", tagarelando sem parar em seus celulares. São pessoas que levaram Tony Blair ao poder e assinam sua doutrina do new labour. Na Alemanha, a etiqueta se chama "novo centro". Não é uma classe de grandes magnatas capitalistas, ainda que Bill Gates conste dela; mas tampouco é uma "classe trabalhadora" claramente definida. Poderíamos designá-la como "empresários de seu capital humano", não importando de que forma eles investem em si mesmos. Muitas vezes são prestadores de serviço móveis, do excêntrico da computação aos animadores do “Club Méditerranée".
Este tipo se encontra em todo o mundo, mas naturalmente, como a globalização, em densidade diferente. Se no Terceiro Mundo é uma camada urbana diminuta, nós encontramos nos países ocidentais uma ampla base de grupos sociais, com um determinado projeto de vida, que se sentiram como parte da "classe global", pelo menos segundo a possibilidade. Também aqueles cuja posição econômica na verdade já era precária desde o início puderam imaginar para si, com o auxílio das redes sociais (ou do suporte familiar dado pelas gerações mais velhas do "milagre econômico", há muito tempo transcorrido), um futuro no "novo centro", participando de certo modo do "capital cultural" (Bourdieu) dos novos setores aparentemente promissores.
Mas é indiferente se se trata dos que ascenderam socialmente na curta era da nova economia ou meramente dos sonhadores ideológicos da "sociedade do conhecimento", dos pequenos empresários da indústria cultural ou dos trabalhadores baratos das mídias: é uma classe de ilusionistas econômicos e políticos. Até mesmo a competência e o profissionalismo ostentados são amiúde meros produtos da simulação. O culto ideológico pós-moderno da virtualidade tem seus fundamentos tecnológicos nos mundos ilusórios das novas mídias e no espaço de comunicação "desrealizado" da internet. Em termos econômicos, corresponde a isso a arquitetura vaporosa do capitalismo das bolhas financeiras que hoje chega ao fim; em termos políticos, a encenação de figuras imaginárias preparadas pela mídia e de vocábulos-design conforme o padrão da propaganda comercial. Essa virtualidade determina a consciência da juventude socializada nos anos 90, a qual constitui um segmento substancial da "classe global" difusa. Em geral são pessoas jovens (mais ou menos entre 25 e 40 anos) que definem a imagem do "novo centro".
Por um lado, essa "classe global" jovem não tem passado nem futuro; ela sucumbiu à ausência de história do mercado total. Apesar disso ela é, por outro lado, o produto de uma experiência histórica determinada. Seu grau zero foi o fim do socialismo, o colapso dos movimentos de libertação e dos regimes desenvolvimentistas no Terceiro Mundo, o ocaso do velho paradigma marxista, o emudecimento da crítica social emancipatória e a decadência da reflexão teórica em geral. Em muitos aspectos, pode-se falar de uma jeunesse dorée, de uma "juventude dourada", leviana, consumista e viciada em diversões. O protótipo dessa designação foi a juventude parisiense contra-revolucionária após a queda dos jacobinos (1794). Foram os filhos de uma minoria rica da grande cidade, como hoje no Terceiro Mundo, separada do grosso de seus contemporâneos. Nos centros ocidentais, ao contrário, é a maioria de uma determinada geração que tem de viver agora seu Waterloo econômico-social.
A "classe global" em sentido amplo é ainda jovem, mas seu futuro já passou. Isso é perceptível não apenas pelos parâmetros econômicos. Muitos não puderam nem sequer assimilar o desastre social em que se dissolveram seus sonhos e suas fantasias. Mas o choque da realidade vai além da experiência de não poder pagar mais o aluguel e de se ver de repente, após as esperanças ambiciosas da nova economia, fazendo bicos deploráveis. Foi também o abalo de 11 de setembro que quebrou o pescoço da pós-modernidade. O simbólico desse ataque terrorista salta aos olhos quando se lê a descrição que Dahrendorf faz da "classe global": "Os que chegaram ao arranha-céu das possibilidades não podem alcançar o topo; hoje em dia o topo está muito longe para a maioria... Mas, enquanto uns elevadores só sobem até o décimo andar e outros só começam no 50º, há para todos uma subida. Mas há ainda aqueles que nem sequer alcançam o andar térreo do edifício das possibilidades". Com um único golpe, a destruição brutal das torres gêmeas e a queimadura do Marco Zero tornou evidente para a "classe global" e seus oportunistas ideológicos que seu "arranha-céu das possibilidades" não é o mundo inteiro e que a "fúria bárbara da destruição" não poupa nem mesmo os centros.
O fim das ilusões econômicas é também o fim da "segurança". Para medir como a jeunesse dorée da pós-modernidade decaída, agora não mais tão dourada, assimila sua própria crise, pode se aduzir como indicador a geração correspondente dos radicais de esquerda. Sem dúvida é uma pequena minoria ideológica, mas que passou, como parte integrante da sociedade, pela mesma socialização e provém do mesmo meio e dos mesmos setores sociais. Justamente porque ela precisa se legitimar no interior dessa relação com a pretensão do pensamento refletido, ela pode servir de sismógrafo para as tendências mais gerais. Essa esquerda virtualizou sua própria radicalidade há muito tempo, conforme o padrão da sociedade circundante. A crítica econômica dura foi substituída em grande parte por um culturalismo brando. Por esse motivo, a minoria de esquerda se encontra tão despreparada diante das catástrofes econômicas e políticas da pós-modernidade em colapso quanto a grande maioria da "classe global".
Sob a pressão dos fenômenos reais que não se deixam mais desrealizar, dissolvem-se os paradigmas de qualquer modo já extenuados de uma crítica social cujos conceitos se tornaram completamente imprestáveis. Na presente crise mundial, o chão social comum das forças sociais concorrentes passa a tremer, as formas categoriais comuns se rompem, o sistema referencial comum choca em seus limites. A ala esquerda da "classe global" e de sua jeunesse dorée é completamente incapaz de se colocar esse problema.
Uma parte refugia-se em reações regressivas. A reinterpretação culturalista da crítica do capitalismo e do anti-imperialismo se aproxima de idéias reacionárias, saturando-se de anti-semitismo e de concepções neonacionalistas. O conceito de "povo", tal como deve ser mobilizado contra as consequências negativas da globalização capitalista, revela sua qualidade anti-emancipatória de estreiteza "étnica". O espectro da regressão ideológica vai da nostalgia do keynesianismo nacional até o projeto folclórico, incluindo a simpatia pelos terroristas suicidas. Uma outra parte da esquerda na "classe global" gostaria de se refugiar atrás dos muros da fronteira imperial a fim de barrar a barbárie lá fora no Terceiro Mundo. De súbito, essa esquerda se torna tão estupidamente pró-americana quanto seus pais eram estupidamente antiamericanos. Invocam irrefletidamente os "valores ocidentais", o "mito de Nova York" e os deleites do consumo de mercadorias. A crítica do capitalismo é abandonada; antes de tudo a máquina militar norte-americana deve criar a "ordem". "
Belo texto e triste realidade...
ResponderExcluirDa minha parte acredito é na incapacidade intelectual e numa total ausência de memória cultural desses jovens (nem tão jovens), ou se preferir na sua total manipulação por outros setores...
Considero-os incapazes mesmo de elaborar e sustentar qualquer teoria que seja...
É sim um paradoxo atacar uma cultura (nordestina) visando defender a ausência cada vez maior de outra (paulista), pois como foi bem colocado por você, essa última cada vez menos presente, há muito sendo sistematicamente substiuida.
É como vc mesma me disse, sobre um outro assunto, essa manipulação acontece no inconsciente...
É temos muito trabalho à realizar, e um trabalho Hercúleo...
Abraços Luciano...
É triste ver e viver essa situação, você tem razão.
ResponderExcluirÉ isso que dá o descaso para com a educação, mentes vazias é terreno fértil para ervas daninhas.
Abraços
Graça Aguiar