sexta-feira, 18 de junho de 2010

"Mudar os professores ou quem fala sobre eles"

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Ao ler o artigo de Gustavo Ioschpe entitulado "Mudar os professores ou mudar de professores" na Veja de 02/06/2010, finalmente constato que vivemos a era dos "homo economicus". Esta era em que o fascinío pelos números do "custo/benefício" econômico supera (e não auxilia ou não se soma a) qualquer outra explicação complexa que utilize variáveis psicológicas, pedagógicas, sociais, históricas, enfim, "humanas". Não desmerecendo a análise econômica (que por si só é incrivelmente complexa) e também não desvinculando a Economia do rol das ciências "humanas" (apesar do desejo dos economistas e visto que - e não nos esqueçamos: a própria matemática é uma linguagem humana para desvendar a realidade, não se confundindo com a própria realidade).
Esforço-me no objetivo de compreender esse processo social não facilmente percebido pelos "peixes de aquário": nós, cidadãos comuns. Processo que se traduz em realidade quando, por exemplo, é escolhida uma economista paulista para cuidar da educação carioca ou quando a revista Veja escolhe um economista filho de banqueiro, graduado e pós-graduado no exterior para redigir sobre educação nacional. Nada contra paulistas! Muito menos, contra economistas milionários! Escrevo um texto livre de preconceitos! Acredito que a secretária pode realizar um bom secretariado. Mais ainda: acredito que alguém que nunca entrou numa sala de aula no Brasil (ou que escreva melhor em inglês que na língua nativa) tem o direito de escrever um artigo para a Veja; e a Veja, de publicá-lo. A busca pela compreensão desse processo levou-me a uma resposta "natural" de tão óbvia, a democracia. Salve a democracia! Um sentimento que me impele a escrever: a esperança que a voz dos professores seja ouvida e publicada também pela mesma Veja, com o mesmo peso e medida do artigo do já referido autor.

Avisto o espectro do "homo economicus". Sintetizando: torna-se triste encontrar artigos na Veja cuja explicação do real baseia-se tão e somente numa análise econômica simplista. Vejamos o argumento do autor: negar a existência da relação entre aprendizagem e a motivação do professorado gerada pelo pagamento de salários dignos. Para isso, baseia-se em somente um documento: uma pesquisa da Unesco publicada no livro O Perfil dos Professores Brasileiros, segundo a qual "apenas 12% se dizem insatisfeitos com a carreira (...), 48% estava mais satisfeita no momento da pesquisa do que no início de sua carreira e só 11% dos entrevistados gostariam de se dedicar a outra profissão no futuro próximo". Assim, conclui que os professores já se encontram satisfeitos e motivados, sem, contudo, alterar o nível estatístico de aprendizagem.
O problema de se lidar com dados, com números, está na coleta e na interpretação deles. Em nenhum momento foi apontado quem são esses professores: do privado, do público, de ambos? De quais Estados? De quais municípios? De quais bairros? Aleatórios? Outra coisa: qual é o conceito de "satisfação" utilizado pelo autor? Puramente econômica? Abrangeria a área pessoal? Quiçá, emotiva? É extremamente vago quanto a isso e conclui a seu bel prazer. Eu, por exemplo, poderia muito bem concluir, com os mesmos dados, que os 48% estão muito satisfeitos por representarem algo de positivo na vida individual do aluno e na vida do todo social e, por isso, não se vêem em outra profissão, como os 11%. E ainda, note bem, o autor usou o mesmo tratamento para duas variáveis distintas; "estar mais satisfeito" (a dos 48%) e "as dos que gostariam de ter outra profissão" (a dos 11%). É possível estar plenamente satisfeito a nível profissional com o ofício e estar infeliz a nível financeiro com o mesmo.
Ainda tenta fundamentar o seu argumento no fato de que "a partir da década de 90, ocorreu um aumento substancial de salário nas regiões mais pobres do país através do Fundef, porém, não houve melhoria na qualidade de educação. De fato, ela piorou: o Saeb, teste do MEC para aferir a qualidade do ensino básico, mostra que em 2007 estávamos pior que em 1995." Porém, um fato omitido ou esquecido pelo autor do artigo é que uma onda, ou melhor, uma verdadeira tsunami de pessoas que estavam abaixo do nível mínimo de dignidade social foi integrada aos projetos sociais dos governos Lula que utilizam o espaço físico e os serviços educacionais das escolas e dos professores públicos. Ou seja, não há meios de se comparar o alunado de 1995 com o de 2007. Foram incorporadas milhões de crianças e adolescentes de famílias das classes D e E com inúmeras, diferentes e incrivelmente mais profundas necessidades sociais que as existentes em 1995, ainda no primeiro ano do primeiro governo FHC. Professores e a escola pública tão e somente não são a panacéia universal para o desespero social. Usar esse argumento para basear a argumentação de que um professor bem remunerado não é um fator importante para melhorar a aprendizagem é uma grande covardia.
Outra grande covardia é o uso na matéria de uma foto de uma aluna dormindo sobre um livro numa sala de aula com a seguinte insinuante legenda: "Quem vai acordá-la?". Posso imaginar uma longa lista de motivos para ela estar dormindo. O professor pode com certeza estar entre esses motivos, mas não é o único, como pretende subjetivamente a matéria. Minha lista pode ir desde o mal-estar, passando pela falta de limites familiares com os horários de sono, o trabalho infantil, a destruição da relação familiar de respeito e atenção, traumas, falta de estrutura física da sala de aula que propicie um aprendizado mais leve e antenado com as novas tendências tecnológicas, etc...
Poderia tecer uma série de outros problemas no artigo. Citarei rapidamente apenas mais dois para, enfim, concluir. O autor, em certo momento, usa de forma errada o conceito de evolução de Charles Darwin, confundindo-o com um conceito mesclado de uma pretensa evolução social rumo a algum tipo de progresso social. Ocorre quando o autor relaciona a evolução biológica do homem (a capacidade de linguagem) com a criação da democracia (uma invenção social). É tolerável que um cidadão de educação média confunda e misture os conceitos de evolução e progresso (coisas tão diferentes quanto feijão e chocolate!), mas vindo de um economista com formação internacional... E o autor não usa essa "mistura"de forma metafórica; usa-a cientificamente. Bem... esse uso conceitual "misturado" não é mais seriamente utilizado no meio acadêmico desde os finais do XIX. É algo que beira o darwinismo social. Uma visão ultra-iluminista da realidade. E ainda, quando afirma que esse tipo de progresso (e aí não dá pra saber se é a capacidade de fala ou a de democracia ou de ambas) se deu através de processos evolutivos, e não revolucionários. O autor deve lembrar que o conceito de evolução de Darwin não necessariamente é positivo para o ser mutante e que as mutações são na verdade "revoluções" sim, visto que tais mutantes se diferenciam dos demais entes da mesma espécie. Uma "revolução" no DNA.

Autor: Prof. Hélcio Mello (História). Texto enviado via e-mail em 17.06.2010.
Contato - helcio_mello@yahoo.com.br

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