sexta-feira, 9 de abril de 2010

Reprodução de artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico - Rea

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Educar contra a barbárie
Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP), do Conselho Editorial da Revista Margem Esquerda e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo


“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”.

“(...) se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito". (Theodor W. ADORNO, 1995: 119 e 134)


Você que nasceu nos anos 60 sabe onde fica Auschwitz? Ainda que não saiba sua localização, provavelmente saberá o que foi Auschwitz. Mas, e a geração dos anos 80: será que aprendeu o real significado de Auschwitz? Será que nossa geração soube cultivar nas mentes e corações destes jovens a indignação diante do que aconteceu em Auschwitz e outros campos de concentração nazistas?

Nossa responsabilidade como educadores é enorme. Quanto maior a nossa ignorância, maior o perigo da negação absoluta da civilização. Como afirma Adorno: “Fala-se de uma ameaça de regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora”. (Id.: 119)

Olhemos ao nosso redor. A realidade que nos cerca expressa a barbárie e está prenhe de fatores que apontam para o risco da regressão. O mundo globalizado impele as pessoas em direção ao xenofobismo, à intolerância diante do outro, à idéia de que há uma inevitabilidade histórica, ao consumismo e ao individualismo desenfreado. Naturalizam-se as mazelas e misérias da condição humana, em nome de um determinismo amparado num viés tecnicista e nas necessidades da concorrência internacional, isto é, da predominância do mercado.

As possibilidades históricas são suprimidas pelo discurso único. Prevalece a mesmice entediante e auto-anestesiante. Certos espaços onde deveria frutificar a reflexão crítica mais parecem “cemitérios de vivos”. A crítica deu lugar ao comodismo e ao servilismo. Os poderosos de plantão decretaram que não existe alternativa e muitos intelectuais, salvo honrosas exceções, acataram. Os problemas sociais que afligem enormes parcelas da humanidade, excluídas da mais elementar cidadania, parecem inevitáveis ou um castigo dos céus. O Capital riscou do mapa contingentes populacionais cujo maior pecado é simplesmente não ter poder aquisitivo para consumir. Estas pessoas, no Brasil, na África, na Índia e mesmo nos países desenvolvidos, não contam como humanos: são descartáveis.

A desnutrição cresce num mundo onde a tecnologia já torna possível a superação da fome. Contrariamente aos ideólogos malthusianos, nosso problema não é o crescimento populacional. As guerras declaradas, as guerras civis não-declaradas nos centros urbanos e as políticas governamentais funcionam como a foice da morte a ceifar a vida de milhares de crianças e jovens precocemente enviados para o além. O problema está na concentração da riqueza – aqui e lá fora. As próprias instituições internacionais, como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), reconhecem que a globalização concentrou mais renda, seja na relação comercial entre os países, seja no âmbito interno destes.

A condição humana continua a ser aviltada em situações que antes horrorizavam os bem-pensantes membros da classe média intelectualizada. Basta ver as notícias sobre as torturas nas cadeias deste nosso imenso país. As vítimas em geral são negros e pobres. E o trabalho infantil, a prostituição de crianças e o trabalho escravo, volta e meia denunciados na grande imprensa?

Enquanto isso, nós, educadores e intelectuais acadêmicos, nos voltamos para o nosso mundinho, para o nosso umbigo; para as veleidades da ambição acadêmica. Vaidosos, ostentamos nossos títulos acadêmicos como prova da nossa pretensa superioridade intelectual. Títulos que nada provam. Mesquinhos, alimentamos nosso ego com o quinhão do poder burocrático. Em nossa arrogância, fetichizamos a técnica e o conhecimento sem atentarmos para o fato de que seu domínio pelo nazismo significou a supressão da humanidade. Como compreender que foram precisamente os cientistas, isto é, pessoas tituladas e diplomadas, que projetaram o sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com rapidez e eficiência?

Donos da verdade, damos ouvidos às conversas de corredores; formalizamos a informalidade das relações em memorandos, protocolandos etc. Transformamos o trivial e o ridículo em batalhas políticas – ainda que coloquemos em risco a sobrevivência econômica dos nossos colegas de trabalho. Substituímos a mais elementar solidariedade – ou mesmo o tão famigerado corporativismo, mas que tem lá seus aspectos positivos, pois pelo menos expressa um mínimo de solidariedade – pela autofagia e pelo individualismo exacerbado.

Em nome da eficiência quantificamos tudo. Dessa forma, repetimos outro procedimento presente em Auschwitz: a coisificação das relações humanas. A partir do momento que não nos indignamos diante da realidade social, que aceitamos como naturais determinados fenômenos sociais, acabamos por admitir que parcelas de seres humanos são descartáveis. Ao perdermos a noção do humano, o que Adorno denomina de consciência coisificada, nos tornamos coisa e tratamos os outros como coisas.

Longe de pura abstração filosófica, este fenômeno está presente em nosso cotidiano nas questões que nos parecem mais banais: a delinqüência juvenil (lembremos de como os adolescentes atearam fogo no índio Pataxó); os assassinatos motivados por roubos de pequenas quantias ou mesmo por uma discussão com o motorista de ônibus; o domínio do tráfico e quadrilhas semelhantes (onde o fator humano só conta como consumidor de drogas e meio de enriquecimento). Numa realidade onde a vida humana vale menos do que um objeto material qualquer, a tendência é a crescente banalização do mal.

Perdemos os limites. Quando um filho da abastada classe média trata outro ser humano como coisa descartável e ficamos indiferentes alimentamos a serpente do autoritarismo. É preciso, portanto, impor limites e mostrar que o intolerável não pode ser tolerado. Em nome da liberdade de expressão, grupos racistas e neonazistas fazem propaganda pela Internet. Não podemos tolerá-los! Não podemos agir como se isto fosse insignificante. O argumento preconceituoso contra os negros, os nordestinos, os homossexuais, etc., nos diz respeito.

Como educadores, temos responsabilidade social diante de tudo isso. Então, ao invés de nos perdemos em discussões intermináveis e estéreis; de nos afogarmos em nossa própria vaidade; de gastarmos nosso precioso tempo na mesquinhez do emaranhado burocrático e na luta pelo poder de controlar os meios de prejudicar o outro; de nos desgastarmos em picuinhas e academicismos; eduquemos no sentido da auto-reflexão crítica e nos dediquemos à tarefa de esclarecer, para que se produza um clima intelectual, cultural e social que não permita a repetição de Auschwitz. O primeiro passo é repensarmos nossas práticas como educadores.e nos indignarmos com tudo que nos lembre Auschwitz ...


Referência Bibliográfica:
ADORNO, Theodor W. (1995) Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: paz e Terra

Os artigos publicados não expressam necessariamente a opinião da revista e são de responsabilidade exclusiva dos autores.
Fonte:
http://www.espacoacademico.com.br/039/39pol.htm

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